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Cintia de Moraes Suzuki

1975 - 2021

Um chá com bolo, proposto por ela de surpresa, abriu a porta para uma grande amizade.

Essa história começa em 2008, um bom tempo depois do nascimento de Cintia. Foi quando ela, moradora da casa 6, resolveu bater à porta da casa 1 e pela primeira vez teve contato com Gabriela.

A adolescente já conhecia Cintia de vista e do vai e vem do condomínio localizado no bairro de Pirituba, mergulhado na enorme São Paulo. Um espaço onde foram construídas casas geminadas e os moradores mantinham um excelente relacionamento desenvolvendo amizades. E por isso, mesmo estando só em casa, não teve receio em receber Cintia, que num sábado à tarde bateu à porta com um bolo e um bule de chá dizendo: “Ei Gabriela, você não me conhece, mas eu te conheço e trouxe esse chá pra tomarmos juntas".

A conversa foi muito além do tempo necessário para saborear o chá e o bolo. Cintia, numa espécie de apresentação pessoal, e de uma maneira que Gabriela ainda não entendia, contou toda sua história de vida. Por essas coisas que ninguém explica, durante a prosa, descobriram que um ex-marido de Cintia trabalhara na mesma empresa do pai de Gabriela e eram, de alguma maneira, amigos.

Cintia também contou os enormes desafios que enfrentou durante a vida e de como precisou ter resiliência para superar realidades complexas, que de alguma maneira marcaram sua existência. Falou também do nascimento das filhas Giovana, Pâmela e Melissa, frutos de seus relacionamentos afetivos, que tinham idade semelhante à de Gabriela.

No olhar de Gabriela, Cintia sempre foi uma mãe atenta, que criou as filhas para que fossem pessoas autônomas e independentes. Com isso, “a mãe de três mulheres”, proporcionou a elas um amadurecimento enquanto pessoas. Já bastante maduras, precisaram amadurecer ainda mais para lidar com o luto pelo falecimento da mãe.

Cintia foi uma mulher muito engraçada em seu jeito peculiar de existir. Nas conversas que mantêm com Gabriela, as filhas lamentam não ter registrado, em mais vídeos, muitos momentos em que ela expressava seu bom humor. Muitas vezes a característica vinha à tona quando, de forma espontânea e muito natural, Cintia encontrava respostas inusitadas para tudo. Na ponta da língua, com o acréscimo de trejeitos como gestos e caretas, as respostas surgiam e produziam muitas risadas.

Cintia também gostava muito de dançar. E seu gosto musical era semelhante ao das filhas. Enquanto ouvia Katy Perry, Shakira, Ariana Grande, ela dançava. Gabriela tem na memória um momento acontecido no "réveillon" de 2019 para 2020 que passaram juntas. Com fone de ouvido, de olhos fechados, Cintia ouvia algum "hit" e, movimentando o próprio corpo, esboçava uma coreografia embora estivesse deitada na cama. Gabriela acrescenta que ela estava tão compenetrada “que nem percebeu quando eu entrei e saí do quarto”.

O jeito versátil, inventivo e uma capacidade enorme de cativar e de manter boas relações interpessoais ia muito além do condomínio onde Cintia morava. Graças a essas características ela teve duas empresas. Uma delas tinha como objetivo viabilizar empregos para descendentes de japoneses que viviam no Brasil e queriam trabalhar no Japão. Importante dizer que antes disso ela morou e trabalhou durante dez anos no Japão, onde também cativou e construiu boas relações. Até a crise econômica de 2008, foram muitas oportunidades abertas por ela para nisseis residentes em nosso país. “Ela chegou a mandar cerca de 70 pessoas para o Japão de uma só vez”, conta Gabriela, acrescentando que, depois da crise, a economia japonesa desacelerou, as oportunidades foram reduzidas de forma drástica e ela acabou fechando a empresa.

Outro empreendimento dela foi a gestão de uma imobiliária. Foi este negócio que viabilizou a manutenção da estabilidade do orçamento da família. A empresa era responsável por uma carteira de aluguéis muito grande e muitos clientes tinham em Cintia uma confiança muito grande, fazendo dela uma referência no mercado imobiliário para muita gente.

Voltemos ao campo da amizade de Cintia e Gabriela, pois ainda há coisas importantes a registrar. Foi por meio dessa amizade que Cintia tornou-se também a melhor amiga de Rose, mãe de Gabriela. Ao longo da vida, Cintia esteve presente e foi ponto de apoio para Rose em momentos desafiadores, como na ocasião da morte de um irmão. A amiga foi fundamental para o encaminhamento das questões do velório e sepultamento, bem como no apoio emocional a Rose.

Com uma disposição em ajudar incrível, Cintia também se fazia presente e companheira em situações cotidianas e corriqueiras, não importava a hora. Por diversas vezes, já tarde da noite, Rose e Gabriela tinham liberdade de ligar ou bater na porta da casa 6 para pedir um pouco de farinha ou de açúcar para terminar uma receita de bolo, por exemplo.

O carinho era de tal ordem que são incontáveis as vezes em que ela dizia à Rose “eu te amo”. Já durante a pandemia e em respeito às recomendações de distanciamento, as duas passaram a conversar via rede social. Houve uma vez em que Cintia escreveu “se eu morrer, não se esqueça que eu te amo”. Rose reagiu dizendo que ela não falasse aquilo.

Na tentativa de encontrar explicação para o surgimento de uma amizade entre uma adolescente e uma mulher madura de cerca de 30 anos, Gabriela intui que talvez Cintia tenha percebido na amizade uma oportunidade de conhecer um pouco mais do universo dos mais jovens. E com isso, juntar elementos e maneiras de construir uma relação mais harmônica e amorosa com as filhas, que tinham idades bem próximas à de Gabriela. O certo é que ao longo do tempo, Cintia passou a ser vista como uma figura maternal que não se ocupava em exercer sobre Gabriela nenhum tipo de autoridade.

No tocante ao lazer, Cintia também era muito eclética. Por hobby, fez um curso de gastronomia. E preparava pratos saborosos e muito bonitos. Gabriela faz questão de dizer que a amiga “tinha um gosto impecável para decoração e culinária, gostava de tudo o que era belo”. Nas festas e encontros, as sobremesas dela sempre eram atração na mesa.

Noutras vertentes artísticas, estava aprendendo a tocar violoncelo. Bom dizer que anteriormente contribuiu muito para que a filha Giovana aprendesse a tocar piano lindamente, já tendo participado de diversos concertos.

Em sua relação com a cultura japonesa, mesmo não tendo traços orientais, Cintia gostava muito de tudo que envolvesse o Japão. Na decoração da casa, lançava mão de elementos orientais para dar brilho à casa 6. Gostava também de passeios até o bairro da Liberdade, onde comprava produtos para cozinhar, balinhas de alga e enfeites para sua casa.

Outro prazer de Cintia eram as viagens. Juntamente com a família de Gabriela, esteve em várias praias brasileiras, na cidade mineira de Capitólio para conhecer o lago de Furnas e também na goiana Caldas Novas. Sozinha, foi várias vezes ao Japão e aos Estados Unidos. Na volta de cada destino, trazia sempre lembranças para aqueles que amava.

A mulher que teve na vida muitos aspectos que “parecem uma novela”, divertia-se muito acompanhando novelas na televisão. Para descansar a mente e o corpo da rotina pesada de trabalho, sentada no sofá, não perdia um capítulo das histórias que começava a acompanhar.

Cintia segue viva nos momentos em que Gabriela usa um vestido, a panela de arroz, os pijamas e uma mochila que ganhou de presente dela, e na contratação do mesmo arquiteto e pedreiro que fizeram a reforma da casa 6 para também reformar a casa 1 do condomínio.

Cintia nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 46 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela amiga de Cintia, Gabriela Alencar Pereira. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 8 de junho de 2022.