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Elenita Dias Mota

1968 - 2021

Cultivava muitas plantas, mas as rosas eram seu xodó: tinha várias roseiras, das mais diversas cores e tipos.

Ela foi uma mulher forte e lutadora desde sempre. Helena, como gostava de ser chamada, era uma mulher vigorosa, guerreira criada na adversidade, que conheceu muitas dores e dificuldades desde cedo. Nasceu no interior de Goiás, numa família grande cujos filhos vivos chegavam a 11 e mais alguns que foram perdidos nas vicissitudes da vida.

Desde cedo conheceu o trabalho duro. Filha de pais religiosos, ela seguiu fielmente o mesmo caminho de seus pais, ia à igreja, era batizada, mas tinha pais muito rígidos e eram tempos mais rígidos ainda. Aos 15 anos, em um castigo de seus pais, apanhou tanto que arruinou quase todos os dentes. Por causa disso, e apesar dos esforços de conserto do dentista, se afastou da igreja.

Por volta dos 16 ou 17 anos, ficou grávida. Sua filha conta que Helena “tinha pouca instrução, abandonou a escola, engravidou e se casou. Adquiriu o vício do tabagismo, engravidou novamente, viveu dois anos em um casamento frustrado, sofrendo humilhações e agressões físicas, mas não se acomodou. Ela se divorciou, mesmo sabendo que ia ficar mal vista pela cidade toda, interior nos anos 80, ela perdeu a guarda dos bebês, por ser considerada menor de idade pela lei. Entrou em depressão, definhou.”

Os pais, preocupados, providenciaram uma mudança para Anápolis: novos ares, nova vida; ela começou a trabalhar como doméstica, morando um período com sua irmã, para logo arrumar seu cantinho. Inquieta, tempos depois se mudou para a capital, para casa de outro irmão cuja esposa era também sua amiga: cuidava da casa deles e de seus sobrinhos enquanto trabalhavam, em troca de moradia, comida e salário.

Um dia, em visita aos pais no interior, durante a viagem, um homem se aproximou e, após ouvir uma conversa dela com conhecidos, na qual falava de seu divórcio, ele puxou assunto e disse que estava indo trabalhar na cidade que os pais dela residiam; a partir daí não pararam mais de conversar: eles não sabiam ainda, mas ali era o início de uma longa história de amor que duraria a vida toda.

Trocaram cartas constantemente e três meses depois estavam morando juntos. Ele não tinha residência fixa, pois seu trabalho o obrigava a viajar constantemente, então a Helena largou tudo e foi viajar com ele. Anos depois, quando engravidou novamente, resolveram estabelecer residência; não foi fácil, passaram por dificuldades, pois não tinham nada planejado, nem dinheiro para despesas com pré-natal — nem mesmo para fazer o ultrassom do bebê , embora ela soubesse que era menina. Dizia pra todo mundo que quisesse ouvir que “a terceira gestação seria a bonequinha que ela tanto pediu a Deus”. E assim foi, conta a filha Kelly. As coisas começaram a melhorar e com a vinda da Kelly, a Helena se tornou, naquele momento, a mulher mais realizada do mundo. Os pais dela se mudaram pra Goiânia e a ajudaram a conseguir sua tão sonhada casa própria.

Ela amava plantas, em especial as rosas. Também gostava de fazer bolos e em certo momento passou a vendê-los de modo a fazer um extra, mas nunca sem perder o essencial de vista. “Ela fazia tudo com amor, e dizia: se você não faz com amor, não faz bem feito.”, diz Kelly.

Mas como nada na vida da Helena era calmaria, um temporal arrancou dela seus pertences tão duramente conquistados, inclusive sua casa que tempos depois ela reconstruiu; então um ladrão invadiu seu lar e saqueou tudo, mas ela, lutadora que era, não desistiu: foi trabalhar na casa de seus pais, fazendo faxina, pra ganhar um dinheirinho e ajudar com as despesas. Muito vaidosa, sempre separava algum para o salão, conta a Kelly , que a acompanhava.

Ela era uma mãe incrível: rígida, mas amorosa; a mãe que sempre lutou pra dar o melhor à filha, a quem ensinou o valor das coisas, materiais e sentimentais.

Não tinha paciência pra esperar os "já vou, mãe", fazendo ela mesma o que havia pedido; e quando a Kelly adoecia ela entrava em desespero e pedia a Deus por sua vida. Cuidava de marido, com todo zelo e alguns mimos.

Após um problemas de saúde que ocasionou a retirada do útero, a Elenita parou de trabalhar fora e passou a se dedicar inteiramente ao cuidado da casa e de sua família. Continuou polindo suas vasilhas e panelas até se assemelharem a espelhos. Tinha algumas amigas, ia a igreja onde era conhecida por sua alegria contagiante e sua sinceridade. Mas ela não aguentava ficar quieta, era muito ativa e amavaum café — “ligada no 220”, sempre buscando algo pra fazer. Foi quando ela descobriu a internet e os jogos online, e aquilo se tornou como uma terapia pra ela, onde ela passava a maior parte do tempo, jogando ou fazendo novas amizades pelo país. “Até o temperamento mudou, ficou mais calma”, relata Kelly. Amava o joguinho do "Bomberman".

Pra a Kelly a Elenita foi mais que uma mãe, foi sua melhor amiga; ela sabia tudo da sua vida. Uma ligação que transcendia a relação de mãe e filha. Ela sonhava com o dia que se mudaria para a chácara que planejava comprar junto com o marido. Helena era uma mulher corajosa e destemida.

“Helena era uma mulher completa, não tinha preguiça, não tinha medo. Ela foi a mulher mais incrível que já conheci.”

Elenita nasceu em Ceres (GO) e faleceu em Goiânia (GO), aos 53 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Elenita, Kelly Cristiny Mota da Silva. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Rosa Osana, revisado por Walker de Barros Dantas Paniágua e moderado por Rayane Urani em 1 de outubro de 2021.