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Elidéa Maria Juliano de Albuquerque

1946 - 2021

Deinha era arteira, com suas traquinagens cativava as pessoas e aprontava surpresas.

A vida inteira Elidéa mostrou como era possível superar distâncias para escrever uma trajetória repleta de amorosidade, encantamento e traquinagens para conseguir o que queria.

Uma característica marcante de Elidéa era a capacidade de, em pouquíssimo tempo, transformar-se em “Deinha”, como era carinhosamente chamada por todos. Tinha o dom de se aproximar de um desconhecido e já estabelecer com ele uma relação de afeto. Bastavam alguns minutos de conversa e já estava o recém-amigo chamando-a pelo apelido.

Foi o que aconteceu no ano de 1994, que marca o início de acontecimentos impressionantes. Christian, que na época morava em Balneário Camboriú, Santa Catarina, conheceu Elidéa e o seu filho único, Márcio, moradores de Niterói, Rio de Janeiro, durante o programa “Vá Pra Copa no Grito”, realizado em São Paulo, por uma emissora de TV. Christian conta que conheceu Elidéa no café da manhã do hotel. “E depois das primeiras conversas, nunca mais nos afastamos.”

Logo no primeiro programa, Christian e Márcio estavam classificados para ir para Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos, com todas as despesas pagas. No final, somente o Márcio ganhou a viagem com acompanhante. Christian ficou muito triste e frustrado com a desclassificação, que aconteceu no último programa. Ainda no estúdio, Deinha e Márcio começaram a chorar junto com Christian, pois também ficaram profundamente tristes. “Naquele momento eu percebi que tudo seria maior do que uma simples amizade, que passaríamos a ser de uma mesma família” - recorda Christian.

Chegou a época da Copa do Mundo e eles embarcaram para os Estados Unidos. Contudo, antes de ir, deixaram a casa deles em Niterói para que Christian, na época com 16 anos, e a família, fossem conhecer o Rio de Janeiro. “Ninguém que eu contava essa história acreditava". Todos questionavam o fato de alguém deixar as chaves da casa com uma pessoa que mal conhecia.

Desde então Deinha adotou Christian como um “filho do coração”. E eles passaram a se encontrar em todas as férias. Deinha e a família iam para Camboriú e, quando não podiam, era Christian quem ia até o Rio, também com a família.

Ao longo da convivência, ela não esquecia de ninguém. Não teve um único aniversário ou outra ocasião especial do qual ela não se lembrasse. Deinha sempre dava um jeito de mandar um presente, uma telemensagem, uma flor ou fazer uma outra surpresa. Muitas vezes, ficava com as contas no limite, com despesas que, quase na sua totalidade, visavam fazer agrados para outras pessoas. Eram presentes que ela amava dar. “Mal sabia que ela já era um presente em nossas vidas!” diz Christian, agradecido.

Esse hábito proporcionou um outro fato emocionante. No dia do casamento de Christian e Rosana, em 2002, Deinha não pôde ir, pois cuidava da mãe que estava adoentada. "Mesmo assim, ela aprontou. Chegou uma equipe de filmagem no casamento. Mas eu não tinha contratado a filmagem... Foi quando eles disseram que a Deinha tinha contratado e aquele era o nosso presente de casamento.” - relembra Christian. Ela sabia que o casal não teria condições de pagar pelo serviço para registrar a celebração. E, como era seu costume, apertou o orçamento pessoal para praticar mais um ato de carinho.

No universo familiar, Elidéa também manteve uma relação de muito carinho e afeto com o filho único, Márcio, e com o esposo Severino, que era um homem apaixonado por ela. Já estavam juntos há quarenta e quatro anos. Quando o marido teve um câncer, ela não mediu esforços para estar ao lado dele e realizar o tratamento necessário, com o apoio do filho. O mesmo aconteceu quando o irmão dela precisou de cuidados.

Na vida de Elidéa houve também situações engraçadas. Uma delas ocorreu em um Natal. Deinha teve a ideia de assar um leitão. Saiu e comprou um inteiro, desses com uma maçã na boca. Christian lembra que a chegada dela em casa foi uma cena ao mesmo tempo assustadora e engraçada. Pois bem... Em meio à euforia do encontro, o porco foi esquecido no forno. Alertados pelo cheiro de queimado, todos correram para a cozinha. Desligado o fogão, o leitão estava completamente carbonizado! Nem a maçã sobrou! "Falamos que era um leitão à carbonara e todos riram muito. Foi um Natal inesquecível!"- recorda Christian

A família não esquece de outra peculiaridade muito presente na vida de Elidéa, “a baixinha mais arteira de Cordeiro e Niterói”. Fazia cada traquinagem para conseguir estar em lugares inusitados! Atitudes que, no final, acabavam trazendo mais alegrias do que preocupações. Dona de uma voz suave e amorosa, de um olhar cativante e de um corpo esguio e pequeno, Deinha dava sempre um jeito de chegar a locais onde normalmente ninguém podia entrar. Foi assim que colecionou fotos com gente famosa. Em 2016, época das Olimpíadas e Paraolimpíadas no Rio de Janeiro, nem a dificuldade dos idiomas diferentes a impediu de tirar fotos com atletas kenianos, egípcios, britânicos. Abraçou também o então presidente do Comitê Olímpico Brasileiro e ex-jogador de vôlei do Brasil, Carlos Arthur Nuzman, que simpatizou muito com ela!

Com uma energia incrível e “muito levada”, Deinha sempre sumia. Um dia ela foi visitar Christian em Brasília, e mais uma vez apareceu em um lugar inesperado. Era o dia do julgamento do chamado “Mensalão” no Supremo Tribunal Federal. O evento foi transmitido ao vivo pela TV Justiça. E ela apareceu no plenário do Supremo, atrás dos ministros. Christian recorda que depois do susto, os dois riram muito.

O filho único, Márcio, sempre teve a mãe como uma pessoa especial. Carinho e amor nunca faltaram. Ele afirma que esse tributo é uma merecida homenagem, pois a mãe e nenhuma das vítimas da Covid-19, são um número ou apenas mais um. Por isso faz “uma homenagem válida e feliz”, porque resgata parte da memória da mãe e alimenta a saudade que sente dela com momentos marcantes e felizes.

Por sua vez, o “filho do coração” Christian, afirma que Deinha foi muito importante em sua vida. “Ela é um ser iluminado! E tenho certeza de que se ela estiver nos vendo, sua alma ficará extremamente feliz com essa homenagem.”

Elidéa nasceu em Cordeiro (RJ) e faleceu em São Lourenço (MG), aos 74 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo filho do coração e pelo filho de Elidéa, Christian Estrada Ramos e Márcio Albuquerque. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 21 de junho de 2021.