Sobre o Inumeráveis

Ernesto Jurgen Grassl

1959 - 2021

Corintiano, ele virou são-paulino graças ao amor pela esposa.

Tudo que Ernesto tocava "dava certo”, porque tudo, “absolutamente tudo que ele fazia era com amor”. Foi assim que sua existência foi resumida num post na rede social pela filha Caroline, recordando uma conversa com o irmão Eric pouco depois do falecimento do pai. Por sua vez, a esposa Eva descreve que Ernesto “cumpriu a vida com excelência: era generoso, honesto, calmo e nem um pouco materialista”. Já o genro Gustavo, companheiro de Caroline, enxerga no sogro um homem “muito sólido, estável, sereno, simples, carinhoso, firme e com uma enorme capacidade de escuta, com quem era possível contar em qualquer situação”.

Antes de passar a contar um pouco de sua história no mundo privado, é bom dizer que esse mesmo jeito de ser e viver foi muito importante na vida profissional de Ernesto. Projetista de maquinário, nas empresas por onde passou sua facilidade na gestão de pessoas logo ficava evidente. Assim, ele atuou por muito tempo em cargos diretivos e consultoria de vendas. A forma apaixonada de trabalhar de Ernesto rendeu a ele muito reconhecimento e prêmios.

O descendente de alemães, filho de Johan e Ing, cresceu no bairro de Santo Amaro e ao longo da vida foi apaixonando por motocicletas. Na juventude, tinha uma moto pequena, mas logo depois do nascimento da primeira filha, Caroline, a esposa Eva pressionou para que vendesse o veículo. Eva temia que um acidente pudesse atrapalhar a trajetória amorosa do casal, bem como o cuidado com a recém-nascida. Contudo, já na maturidade, com filhos criados e encaminhados na vida, com a cumplicidade total de Eva que virou sua garupa de muitas viagens, Ernesto voltou a andar de motocicleta. Inicialmente comprou uma moto menor, mas aos poucos acabou por ter uma moto estradeira que levou o casal a muitos lugares e experiências.

A paixão pelas motos e a busca por novos companheiros de estrada levaram Ernesto a tornar-se sócio do motoclube “Os Vulcaneiros”. E como mandava o protocolo, nos dias de passeio, ele e Eva vestiam figurino completo de motoqueiros. Com suas roupas pretas, jaquetas, botas, capacetes e somente o que cabia nas bolsas de bagagem da motocicleta, pegavam a estrada. No caminho, muita conversa boa e tempo de rever o que se passava na vida, sorrisos, e experiências gastronômicas em paisagens que variavam do alto de serras e morros paulistas, até praias e cidades do interior do estado de São Paulo.

O amor por Eva foi “a grande religião do Ernesto”, conta o genro Gustavo. O casamento de muitos anos teve início em uma cerimônia religiosa no Templo, com direito a decoração com palmas rosadas, buquê de flores naturais e um elegante vestido. Nas fotos da celebração, já marcadas pela passagem do tempo, há também registros do casal dançando no salão de festas entre olhares e sorrisos apaixonados. O encantamento de Ernesto por sua amada atravessou toda a vida e o “brilho que ele tinha com a Eva era uma coisa de maluco”, conta Gustavo. A tal ponto que foi capaz de abandonar sua paixão pelo Corinthians e virou são-paulino uma vez que Eva torcia para o tricolor paulista.

Entre os sonhos que o casal não conseguiu realizar ficou uma viagem à Itália, no ano de 2020, para assistir a um show do tenor Andrea Bocelli. Os ingressos estavam comprados e a viagem planejada, mas, com a pandemia de Covid-19, Ernesto e Eva acabaram assistindo ao espetáculo através da internet, numa tarde especial de encontro familiar repleta de encantamento diante da exibição do tenor italiano. Como acontecia com frequência, na cozinha da casa de Caroline e Gustavo, Ernesto e o genro prepararam a refeição saboreada ao redor da mesa entremeada de muitas conversas.

A paternidade trouxe a ele mais dois amores, cuidados com toda atenção e carinho possível. Na infância de Caroline e Eric, era comum encontrar Ernesto em brincadeiras com os dois. Quando ainda bem pequenos os filhos desfrutavam de passeios numa cadeira instalada na garupa da bem cuidada bicicleta. Na adolescência, Ernesto era o companheiro para jogos de vídeo game. Nas datas de aniversário, não faltavam festas. No quotidiano da casa, o amor verdadeiro de Ernesto pela esposa e pelos filhos era evidente. Aos filhos e pessoas mais próximas ele ensinava pelo exemplo e era capaz de grandes gestos.

A companhia do pai seguiu os filhos até a idade adulta, sempre com uma atenção especial em cuidar para que a relação entre os irmãos fosse harmônica e carinhosa. Neste sentido, foram vários os momentos criados por Ernesto para manter a convivência e a união da família. Ele chegou inclusive a trabalhar junto com Eric, que atua na área de automação. Por sua vez, Eva foi companheira de coral de Ernesto. Já com seus 60 anos ele resolveu cantar no coral da Igreja. Numa apresentação ele e a esposa cantaram uma música de Aguinaldo Rayol e a felicidade do casal por cantarem juntos saltava aos olhos.

Foi por meio de Caroline que Ernesto passou a construir uma relação muito amorosa também com Gustavo, genro que tomou a iniciativa de prestar esta homenagem. Ele conta que Ernesto era muito bom de escuta e que acolhia a filha Caroline em momentos desafiadores. Antes de dar qualquer opinião ou tomar alguma atitude, sempre ouvia com atenção para depois encontrar maneiras de acolher e ajudar.

Em diversas situações, Ernesto era uma espécie de conselheiro de Caroline e Gustavo. Com a habitual capacidade de escuta respeitosa e acolhedora, com muita sabedoria ele dava suas orientações e conselhos ao casal. Gustavo reconhece, agradecido, que o sogro “foi sempre o nosso grande padrinho e uma pessoa fundamental para que ele e Caroline estejam juntos até hoje”.

Entre os momentos de convivência lembrados por Gustavo estão aqueles em que ele e Caroline, juntamente com Ernesto, arrumavam a cozinha depois do almoço. Na limpeza das louças e talheres a conversa era das melhores, com muitas risadas. Na sequência, à tarde, Ernesto e Gustavo iam assistir ao futebol na televisão. Por falar em futebol, num aniversário de Ernesto em que, a então namorada, Caroline, estava indecisa sobre qual presente dar ao pai, Gustavo não teve dúvida: comprou uma camisa da seleção alemã, que muito agradou ao sogro.

Gustavo faz questão de dizer que, para ele, Ernesto “era sogro e amigo na mesma pessoa”. A lembrança mais marcante da afetuosa convivência guardada por Gustavo é a viagem para a praia de Boiçucanga, no litoral paulista. Como era tempo de pandemia, a família alugou uma casa e foram em busca de um momento de descontração e um pouco de liberdade no momento de fechamento da capital paulista por questões sanitárias. Numa manhã, Ernesto e Gustavo foram caminhando pela praia para comprar peixe e camarão diretamente de um pescador. Na volta para casa, passaram um longo tempo limpando os camarões e deram prosseguimento à conversa iniciada na caminhada em meio a muitas risadas. Com isso, o trabalho de limpeza dos camarões acabou demorando mais que o esperado e Caroline teve que reforçar a equipe para que o almoço não atrasasse demais.

As marcas da cultura alemã estavam presentes em alguns aspectos da vida de Ernesto. Além do português, ele falava alemão fluentemente. Noutra vertente, apresentava-se também na culinária. Ernesto gostava muito de strudel e vez por outra ia a um restaurante paulistano para poder saborear a tradicional sobremesa alemã. O chantili preparado em casa também era um acompanhamento de diversas sobremesas. Pratos com bacalhau e camarão sempre eram muito apreciados por ele. Numa evidente manifestação de seu lado brasileiro, o cafezinho depois do almoço não podia faltar. A paixão era tanta que ele fez inclusive uma assinatura de cápsulas de café expresso, que pagava mensalmente em seu cartão de crédito.

No tempo de inverno era hábito da família o preparo de sopas. E para acompanhar, os famosos e saborosos “croutons honestos do Ernesto”. Ele preparava como ninguém os cubinhos de pão italiano assados em azeite e temperos. O nome dado aos croutons preparados por ele eram uma referência à honestidade invejável de Ernesto que, em muitos ambientes, tinha inclusive o apelido de Seu Honesto.

Ernesto segue vivo, na coleção de selos e cédulas de dinheiro de países que visitava, herdadas por Caroline; no adesivo do motoclube que segue colado no vidro traseiro do carro atualmente usado por Caroline e pelo genro Gustavo. Na serenidade, responsabilidade e capacidade de cuidar herdada do pai com que Caroline segue a vida. Nos momentos em que se escuta o áudio de sua voz, gravada pouco antes de adoecer, cantando “Como uma Onda no Mar”, de Lulu Santos. Na lembrança de um dos tantos conselhos ensinados a quem convivia com ele: “Brigar não vale a pena. Prefiro a paz”.

Ernesto nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 62 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo genro de Ernesto, Gustavo Brandão Soares da Silva. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 26 de setembro de 2023.