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Fátima Regina Fernandes

1954 - 2020

Deixou toucas e botas para doar a um asilo, foi o último gesto solidário em uma vida marcada pela bondade.

Dona Fátima tinha o dom de cuidar e ouvir. Amava caminhar no parque Água Branca, nunca voltava de lá sem ter trocado bons dedos de prosa com amigos. Não raro, fazia novas amizades nesse passeio e em outros. Excelente ouvinte, não dava o papo por encerrado se a pessoa precisasse de ajuda emocional. Mesmo que tivesse acabado de conhecer, pedia o telefone para continuar a conversar com a pessoa. É por isso que ela vivia no WhatsApp, estava sempre disponível para os amigos, nos momentos de alegria e tristeza.

Por anos, viveu para cuidar dos dois filhos e depois da mãe, com Alzheimer. Quando a mãe partiu e os meninos já estavam independentes, começou a olhar mais para si sem esquecer do outro. Passou a sair, viajar e fez duas tatuagens: uma com a palavra fé e outra de um cachorro.

Os cães eram grandes amores de Fátima. Sempre teve esses pets em casa, mas dona de um coração que transbordava afeto, também cuidava dos animais de sua rua. A fé, marcada na pele, não era fechada em templos, referia-se a uma comunhão com Deus e aos atos de caridade.

Mineira, mudou-se para São Paulo na casa dos 20 anos em busca de independência, conseguiu. Na terra da garoa ainda realizou o sonho de terminar os estudos e livrar-se do cigarro, uma conquista que ela alardeava de tão importante que foi.

Era um pé de valsa eclético. Dançava samba, forró e música sertaneja. Tinha como ídolos Renato e seus Blue Caps, mas eles dividiam espaço com Barões da Pisadinha, atualmente.

Fora de casa, gostava de saborear o sorvete de casquinha do McDonald's. No lar, amava frango com macarrão.

A filha, Viviane, conta que a mãe não passava um dia sem falar com ela. Mostrava-se atenta a tudo que ela falava e torcia, como ninguém, por seus feitos. Morava com o filho e a cadelinha Vitória.

No início da pandemia, Fátima tricotou botinhas e toucas de lã para serem doados a um asilo. A entrega foi realizada após sua partida, aqueceu a alma de quem recebeu e entregou as peças.

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Carta aberta de Viviane para sua mãe, Fátima

Mãe cuidadosa e amorosa. Nunca passava um dia sem mandar mensagens para saber se eu estava bem. Prestava atenção em tudo o que eu contava pra ela e fazia questão de mostrar estar preocupada e que cada palavra dita era ouvida.

Fazia amizade com todo mundo. Por sua natureza carinhosa e atenciosa, as pessoas vinham naturalmente até ela para falar de suas dores e alegrias. Ela as ouvia com muito amor e trocava número de telefones para continuar cuidando das feridas emocionais delas.

Todos a adoravam por sua doçura. O cuidado pelas pessoas nas pequenas coisas era sua marca registrada. Se importava com a dor do outro, muitas vezes se esquecendo da própria dor. Sim, ela também tinha dor, mas priorizava o outro, pois isso a fazia feliz e a dava um propósito.

Adorava dançar e conversar. Fez muitas amizades durante sua caminhada, as quais a carregam no coração mesmo após sua partida.
Hoje, os parques se abrem e ela não está aqui para passear e espalhar seu sorriso tão bonito que trazia tanta alegria aos nossos corações.

Tenho certeza de que ela está bem, do outro lado, conversando, oferecendo um ombro amigo e dançando com o coração leve por ter deixado sua marca tão amorosa na vida de muitos.

Levamos para o asilo suas tocas e botas feitas por suas mãos com a intenção de aquecer aqueles que sentem frio.

Mãe, jamais a esquecerei e a carrego no coração. Sua ausência é amarga e nos causa muitas lágrimas nos olhos e na alma.
Que seu legado de amor, paciência e ternura se perpetue. Te amamos muito.

Fátima nasceu em Belo Horizonte (MG) e faleceu em São Paulo (SP), aos 66 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Fátima, Viviane de Fátima Fernandes. Este texto foi apurado e escrito por Talita Camargos, revisado por Luana Bernardes Maciel e moderado por Rayane Urani em 5 de março de 2021.