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Ivaldo Ribamar Martins de Abreu

1952 - 2020

Saiu da situação de rua e conquistou a todos com sua gentileza; tinha prazer em receber os amigos em sua casinha sempre impecável.

Único, excêntrico, inesquecível. O maranhense Ivaldo Ribamar foi um facho de luz intenso, daqueles que deixam lembranças luminosas no coração de quem o conheceu. "Ivaldo era exótico! Uma pessoa exemplar, culta, um artista! Na juventude, era conhecido como Tom. Vestia-se de forma exuberante, perdia o tino das coisas. Era perfeito em sua dignidade", afirma a amiga Soneide.

Da infância de Ivaldo, sabe-se pouca coisa. "Saiu da capital do Maranhão para viver no Rio de Janeiro com a avó materna e a mãe, após a separação dos pais. Ivaldo — ou Tony — não passou por privações ou dificuldades financeiras; estudou em um colégio particular e fez curso de teatro. A morte da avó foi o gatilho que desencadeou o desequilíbrio mental que o vitimou, e que fez com que perdesse o contato com os parentes", conta Soneide que, muito antes de se tornar amiga dele, cruzou com o andarilho Ivaldo pelas ruas de Nova Iguaçu, na Baixada fluminense.

"Aconteceu uma coincidência incrível em nossas vidas. Eu estava com 17 anos quando vi o Ivaldo pela primeira vez: cabelos compridos, vestido com uma calça branca e sem camisa, dançava na Travessa Irene ao som de uma música vibrante, um rock, que vinha de dentro das Lojas Americanas. Ele dançava sozinho, era um homem muito bonito. Daí, quando fiz 33 anos, comecei a trabalhar no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e encontrei um senhor que se tratava lá. Devia ter uns 50 e poucos anos. Só então soube o nome e o apelido dele".

Segundo Soneide, Ivaldo permaneceu cinco anos internado no Hospital Psiquiátrico de Paracambi, no Rio de Janeiro, mas recebeu alta sem os benefícios sociais aos quais tinha direito e, assim, acabou em situação de rua. "Ivaldo chegou a comer lixo", revela.

Sempre tranquilo e polido, Ivaldo cativou Soneide. "Eu me interessei muito pelo caso dele. Ele me tratava com respeito. Nunca se alterou comigo, e acredito que com ninguém. Ele era muito educado, calmo, um artista. Às vezes colocava uma coroa na cabeça, fazia uma saia com tecido de sombrinha nas costas de sua bermuda e vestia muitas pulseiras de miçanga, criadas por ele mesmo, na parte superior dos braços. Ele era pura cor!"

Com os laços de amizade fortalecidos, Ivaldo pedia ajuda à Soneide para comprar roupas: bermuda, cinto, cuecas e perfume. "Os móveis da casa ele também me pediu para comprar, mas comida ele mesmo comprava. Eu cuidava das finanças dele. Mais tarde, ele conseguiu alugar uma casa e passou a administrar sua própria aposentadoria", explica.

Outra personagem fundamental na vida de Ivaldo foi, sem dúvida, o padre Porfírio. "O padre encaminhou Ivaldo até o CAPS, onde começou a receber assistência cidadã, e onde iniciou o processo de obtenção da segunda via de sua certidão de nascimento. Levou cinco anos para conseguirmos resolver a questão, por conta de um ínfimo detalhe. Padre Porfírio foi quem alugou e pagou um quartinho para Ivaldo durante muito tempo", ressalta Soneide.

No CAPS, Ivaldo participava das aulas de artesanato e produzia anéis e pulseiras de miçanga. Com a nova certidão de nascimento, comprovou-se que Ivaldo trabalhara no Maranhão. Desse modo, foi possível aposentá-lo por invalidez, o que lhe garantiu dignidade e autonomia financeira. "Tony viveu uns cinco anos ou mais com o benefício dele, morando numa casa limpinha que ele mesmo pagava alguém para limpar", recorda Soneide. "Tinha mesa, cadeiras, cama, televisão. Era um lugar bonito, na vizinhança dos estudantes da Universidade Iguaçu (Unig)".

O carinho e confiança de Ivaldo por Soneide se consolidou e ambos mantiveram contato mesmo com a saída dela do CAPS. "Raramente ele vinha até a minha casa, mas continuei indo ao banco com ele. Ainda tenho o caderninho de prestação de contas do que gastava, mas ele quase não gastava nada. Vivia entre o CAPS e a casa, e só".

Soneide ressalta que Ivaldo conquistou toda a equipe: "Um dia, o médico do CAPS veio me dizer: 'Agora eu entendo por que você cuida tanto do Ivaldo. Ele é uma pessoa muito educada'. Verdade. Ivaldo tinha uma candura, uma aquietação, uma "bondade" difícil de se ver. Não tinha agressividade, revolta, sabe?"

Marlene, professora de Artes Plásticas no CAPS, também lembra de Ivaldo com carinho: "Eu conduzia uma oficina no CAPS, ele era um artista. Fazia seus trabalhos com argila e miçangas. As peças dele tinham traços de alegria, tudo muito colorido. Uma única vez, chamou Soneide e a mim para almoçarmos os três juntos. Nos levou para o outro lado de Nova Iguaçu, já perto da "Via Light". Lá, ele preparou o seu prato de salada bem colorida e comeu com elegância. Foi um dia muito especial tanto pra mim quanto para Soneide e, acredito, mais ainda para ele, pois foi uma pessoa excluída da sociedade, que dormia na calçada do fórum em Nova Iguaçu e conseguiu autonomia e soberania para viver melhor, morar em uma casa, comer em um restaurante e nos convidar", pontua.

Para os amigos, ficam as memórias de uma pessoa que soube lidar com seus próprios monstros de forma lúdica. "Tony adorava o Carnaval. Ele se enfeitava e seguia atrás dos blocos de rua. Nunca vou esquecê-lo", garante Marlene.

Ivaldo nasceu em São Luís (MA) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 68 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelos amigos de Ivaldo, Soneide de Sales Lima, padre Porfírio e Marlene Duarte. Este tributo foi apurado por Talita Camargos, editado por Luciana Assunção, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 29 de dezembro de 2021.