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Jair Oliveira da Costa

1944 - 2021

A horta era seu lugar de paz e as galinhas eram seus bichos de estimação.

Jair passou a infância na roça; a família era bem humilde, por isso os pais precisaram trabalhar muito para o sustento dos filhos. Mesmo não sendo um dos mais velhos, ele foi o primeiro a sair de Minas Gerais e partir para São Paulo, aos 14 anos. Precisou comer banana verde para amenizar a fome, passou necessidade, ficou na casa de pessoas estranhas que lhe deram abrigo. Dessa infância sofrida, Jair tirou muitos aprendizados.

Ele aprontava, era o mais bagunceiro dos filhos. “Tanto é que muitas vezes ele falava que incentivava os irmãos a fazer algumas artes, a reinar um pouquinho como criança. E como era bem traquina, as consequências acabavam sobrando para ele. Algumas vezes jogava a culpa para outro irmão; coisa de criança, né?.”, comenta a filha.

Os irmãos se espelhavam nele. Depois que foi para São Paulo, começou a trabalhar, a ter o dinheiro dele, e logo começou a namorar. Com isso, os irmãos viam que ele estava ganhando seu próprio sustento, começando a ter uma vida mais confortável, conquistar as coisas, e começaram ir para São Paulo também, um atrás do outro. E ele recebia a todos, abrigava e apoiava, até que eles pudessem se sustentar. Os pais de Jair também acabaram indo viver na capital paulista, junto com os filhos mais novos.

"Ele começou trabalhando na prefeitura, antigamente o trabalho dele era de pedreiro; abria bueiro, colocava as guias na rua, serviço bem braçal mesmo. Depois, no finalzinho, ele estava como segurança de escolas. Jair gostava do que fazia. Falava, orgulhosamente, para todo mundo, que tinha 35 anos de prefeitura", conta a filha.

Kelly se lembra do pai contar que em uma ocasião apareceu o serviço de abrir uma vala para poder passar um encanamento e ninguém queria fazer. Então Jair falou para o encarregado que ele faria. Depois que ele terminou, o encarregado viu que ele topava até o trabalho mais duro e o promoveu. Passou de ajudante a pedreiro. “O outro colega que não quis aceitar o serviço ficou com muita raiva; ele não sabia que ia ter esse privilégio, e meu pai falou depois que por trás ficou muito contente e ainda deu risada dele e disse: 'Não quis fazer o serviço, eu fiz, aí ó... conquistei!”

Depois que se aposentou foi cuidar das plantações e criar galinhas – tudo em casa. Ele tinha o maior amor pelos animais, era o momento dele de relaxamento e conexão. Plantava banana, milho, feijão e mandioca em um terreno em frente de casa. E também tinha uma hortinha no quintal onde cultivava couve, quiabo, almeirão, cebolinha. O dom de Jair era mexer com a terra, não cozinhava. Na época das Festas Juninas, o quentão era feito com gengibre da horta dele. Também gostava de encontrar os amigos no Bar da Viola; ali ele contava os casos e passava horas e horas conversando e lembrando suas histórias. Na época que caiu e quebrou o braço, Jair ficou alguns dias sem ir ao bar, por estar tomando medicamentos; todos sentiram falta dele, foram saber o que havia acontecido.

"As galinhas eram praticamente animais de criação; ele não dava e nem vendia. Às vezes minha mãe queria fazer a galinha, era muito difícil ele deixar. Era com muita conversa que ela o convencia; mas era uma ou outra, não era sempre que ele gostava de matá-las para comer não, era mais para criar mesmo”, lembra Kelly.

Quando viajava, deixava a responsabilidade de cuidar delas para a filha caçula. Ele pedia para ela cuidar e só confiava nela para o "serviço". “Eu fazia igual a ele, sempre cuidei das criações - tanto dos passarinhos, como das galinhas - eu cuidava como ele, então confiava bastante em mim porque sabia que ia ser tratado como ele gostava.”, garante a moça.

A filha se sente conectada com o pai quando cuida das galinhas. “Tanto que no dia que ele estava indo para a UTI, eu consegui falar com ele pelo telefone para acalmá-lo. Ele me pediu para cuidar das responsabilidades dele - que no caso eram animais, a conta dele no banco, a minha mãe e a minha cunhada, pois a gente perdeu meu irmão também com covid. E meu pai pediu para que eu cuidasse de tudo. Então, me sinto muito conectada a ele quando atendo o seu pedido.”

Jair sempre gostou das coisas certinhas, nunca gostou de nada feito de qualquer jeito. Um homem respeitoso e muito justo, que sempre ensinou os filhos a serem corretos. As contas eram pagas rigorosamente em dia, nunca gostou de comprar nada parcelado.

A alegria de Jair era reunir a família para comemorar alguma coisa na casa dele. Amava juntar os filhos, netos, bisnetos; era com isso que ele ficava feliz. Quase todas as comemorações eram feitas na casa dele: aniversários, Dia dos Pais, Dia das Mães, final de ano. Ele tinha um cantinho preferido para ficar, um lugarzinho encostado no muro que dava pra ver a rua. Ali, Jair passava um tempo escutando música sertaneja, música raiz que ele gostava muito, com um copo de vinho na mão.

Um dos momentos de maior realização para Jair foi viajar para sua terra natal. "Ele ficou numa felicidade só, quando eu fui conhecer a terra dele. Ele queria muito. Foi muito bom, muito gostoso fazer essa viagem com ele. Papai levou a gente no lugar onde eles moraram quando era pequeno. Hoje é uma plantação de café muito grande. Me levou na casa de alguns tios, nos lugares principais da cidade. Ele ficou muito feliz", relembra Kelly.

Jair teve a honra de comemorar bodas de ouro com sua esposa; a moça era da mesma cidade que ele. Mas, eles se encontraram quando ambos foram morar em Campinas; as casas eram uma de frente para a outra e ficavam só paquerando. Depois começaram a se encontrar na rua para namorar.

"Quando nós éramos menores, meu pai era bem rígido, devido à forma como ele foi criado. Educava e corrigia quando era preciso. Conforme crescíamos, a relação foi ficando mais afetuosa; falavámos um para o outro que nos amavámos e nos abraçávamos. Papai ensinou muita coisa pra gente, sempre exigiu que fizéssemos o que é certo. E para conquistar o que a gente conquistou, foi sempre trabalhando, nunca mexendo no que é dos outros. Educação ele sempre nos deu; foi um pai muito bom para a gente", recorda a filha com ternura.

Jair nasceu em Ervália (MG) e faleceu em Campinas (SP), aos 76 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Jair, Kelly Aparecida Costa do Valle. Este tributo foi apurado por Marina Gabriely Alves da Silva, editado por Ana Macarini, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 30 de outubro de 2021.