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Jairo César Bezerra

1941 - 2020

Ninguém, além dele, assobiava lindas canções tão bem.

Um excelente contador de histórias, dono de um humor ácido e fortes opiniões. Foi Jairo quem ensinou o sobrinho Francisco a gostar de músicas antigas e grandes intérpretes, dentre eles, Orlando Silva, Silvio Caldas e Augusto Calheiros.

Com sua máquina fotográfica Rolleiflex, "Peru", como era chamado pelos familiares, contribuiu com muitos álbuns de fotografia. Só ele sabia assobiar lindas canções daquela forma. “Dele, guardarei também nossas muitas conversas altas horas da noite”, lembra Francisco.

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Nunca chamei o tio Jairo de tio. Ou chamava de Jairo ou Peru. Nem sei o porquê deste apelido carregado por ele bem antes de eu nascer. Assim como devo à minha tia Neila ter aprendido a ler e escrever, devo ao Jairo o privilégio de ter absorvido seus conhecimentos de música popular brasileira. Sim. O arredio, sarcástico e cáustico em seus comentários, Jairo me falava muito sobre os grandes intérpretes da nossa música. Principalmente, o favorito dele. O cantor das multidões, Orlando Silva, mas apenas o da época de ouro. Do auge do inigualável cantor. Isso lá pelos idos de 1938 a 1942. Depois desta época, segundo o Jairo, o cantor das multidões perdera a voz límpida e seus maravilhosos agudos, sem falar na perfeita dicção que possibilitava ouvir perfeitamente o que ele dizia ao cantar. E eu conversei muito com o tio Jairo, principalmente no período em que morei com eles. Ele assim como eu, adorava também Luiz Gonzaga e Augusto Calheiros.

Jairo era um autodidata. Por exemplo, ele tinha uma linda câmera fotográfica - por isso a foto, pois arredio como ele só, não tenho nenhuma foto ao seu lado. Jairo batia instantâneos da família. Era mesmo um ótimo fotógrafo. Talvez, o pouco dos meus conhecimentos nesta área eu tenha herdado dele. Vejam só a importância de reconhecer tudo isso. Em minha profissão a escrita é uma das ferramentas, assim como uma máquina fotográfica. Minha tia Neila me ensinou a ler e a escrever e com o Jairo aprendi um pouco sobre fotografar e sobre música popular brasileira. Quanto aprendi com eles! Quanto sou grato aos dois.

A tristeza se mistura às recordações, mas não recentes, de um período em que eu era menino ou já um rapaz. Minha mudança para Porto Velho alterou o desenrolar dessa história minha com eles e os demais parentes e amigos que ficaram em Fortaleza. Porém, ao trazer tantas lembranças na memória, então posso escrever neste momento pensando no Jairo e na dona Neila. Sinto enorme gratidão por cada ensinamento, cada conversa, cada palavra ensinada, cada música comentada.

Ele era fã do grande astro das chanchadas da Atlântica, o saudoso Oscarito. Uma vez, para minha alegria, Jairo contou quando tentou assistir a estreia do filme O cangaceiro, de Lima Barreto. Ele não conseguiu entrar, porque a lotação do Cine São Luiz estava esgotada. Olha que este cinema conta com mais de 1500 lugares. Mas valeu a pena, Jairo falou que viu os dois atores principais Alberto Ruschel, o Teodoro, e Milton Ribeiro, o capitão Galdino. O cangaceiro do bem e o cangaceiro do mal. Era dessas coisas que meu tio Jairo conversava comigo. Cinema e música. Pena que, uns 20 anos antes de partir, passou a ter sérios problemas. Não saia mais de casa, entrou num dilúvio mental. Na viagem mais recente à Fortaleza, depois de muito tempo, ele me reconheceu e até falou comigo me chamando como antigamente - Francisco Humberto. Passou um filme ali na hora na minha cabeça. Todas as lembranças vieram rapidamente. Eu até perguntei se ele ainda ouvia música, Orlando Silva. Jairo olhou para mim e apenas disse não. Eu pensei - que pena, que desperdício, meu Deus. Essa é minha última recordação dele.

Receber a notícia de sua morte fez o dia ficar em suspenso, como se o tempo parasse. Lembro dos versos do poeta Manuel Bandeira, maldita a morte que é o fim de todos os milagres.

Descanse em paz Jairo. Agora você poderá encontrar, quem sabe, numa nuvem dessas que tomam contam do céu, Orlando Silva, Pixinguinha, Ary Barroso, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Roberto Silva, Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, Maysa, Dolores Duran, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, e tantos outros que você tanto gostava e admirava e que eu aprendi a gostar ouvindo você assobiar tantas lindas canções, que ouço até hoje e ouvirei até ir embora. Descanse em paz, Jairo. Agora também vai reencontrar o vovô Bezerrinha, a Finuca, o filho Nélio, que faleceu muito jovem, dona Penha, a mãe, dona Helena, e tantos outros parentes que já partiram.

Seus irmãos Neila, Francilena, Heloísa, Dora, Arminda Maria, Chico, Paulo Roberto, meu pai Luciano, seu cunhado Pessoa, os sobrinhos Ygor, Rayssa, Sidney, Marcos Heleno, eu, todos sentiremos sua falta.

Jairo nasceu em Fortaleza (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 79 anos, vítima do novo coronavírus.

História revisada por Ticiana Werneck, a partir do testemunho enviado por sobrinho Francisco Humberto Bezerra de Oliveira, em 22 de julho de 2020.