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João Teixeira Madureira

1932 - 2020

João Desbravador Tié, nome que representa sua coragem diante dos percalços na estrada dos sonhos. Saboreou a vida.

As homenagens abaixo foram feitas pela sobrinha e pela filha de João, respectivamente:

"Para que resulte o possível, deve ser tentado o impossível." (Hermann Hesse)

Pudera eu encontrar palavras que lhe fizessem alguma justiça. Justiça não me será possível. Um olhar é sempre estreito e falho.

Sei pouco das passagens de sua infância. Embora fosse generoso em contá-las, nem sempre explorei essa oralidade que revela minhas próprias raízes.

Nasceu em fazenda, numa época de outras rijezas e alegrias. Nove irmãos, lida na roça, perda precoce do pai. Cobiçou a cidade para estudar e trabalhar, saindo de casa ainda moço. Desejou cursar Medicina, alvo distante de sua condição.

Assumiu cedo a condução da família. Não à toa, tem o nome do pai agregado ao seu. Tornou-se Tié.

Foi tenaz em seus objetivos de prover. A si, à família de origem, à que formou, àquelas que assistiu. Lutou com construção, fazenda, gado, família, consigo mesmo. Domou e se domou.

Teve ao lado sua esposa Marlene, que seguiu sua rota de vida até o fim.
Brasília tem suas mãos. Virou e revirou suas terras, abriu estradas, plantou edifícios. Tempos promissores e árduos.

Franqueou caminhos aos familiares que ali se enraizaram. Mais tarde, coube-me parte de seu teto. Oferecia hospitalidade aos parentes que dela necessitassem. Assumiu Júlio e Nauali como filhos, em paternidade enérgica e amorosa.

Amante da palavra, da boa comida, da roda de amigos. Do trabalho bem-feito. Do belo, do conhecimento, da erudição. Amante.

Sabia o valor da palavra, tomava-a para homenagear. Com ela também corrigiu direções, sem lhe temer o peso. Não se furtou a colocar os pingos nos is. A palavra moldou sua existência. Legou-nos escritos.

Um leitor. Muitos livros à nossa disposição. Até seus últimos dias, teve nas mãos um livro, revista ou jornal. Buscou palavras como chaves para abrir o incompreensível. Além da palavra escrita, aprazia-se com conversas sobre história e política brasileira e mundial, recente ou antiga. Gostava também de assuntos de fazenda, filosofia, economia, música... Era versado. Memórias de família lhe acendiam. Quem lhe dedicou boa conversa, lhe agradou. Sua sagacidade e gracejo mineiros temperavam essas rodadas. Tinha sempre uma carta na manga a ensejar novo debate.

Foi membro da maçonaria nos últimos quarenta e cinco anos de vida, onde exercitou seus ideais. Conquistou insígnias, suas últimas vestes.

Não fugiu à inovação do computador. Viveu seu tempo, sem se vender.

Cidadão, intentou cargo público na antiga cidade de Brasilinha, hoje Planaltina, em Goiás, onde residiu em seus últimos vinte e dois anos. Faltou-lhe voto. Não lhe faltou reconhecimento em capa de revista como cidadão honorável.

Cantador, a seresta traduzia seus sonhos e lamentos. No fim da vida, ouvia com lágrimas as canções de sua época.

Endurecido, às vezes, foi se deixando ninar à medida que lhe acometiam as limitações da velhice. Nos últimos tempos, referia-se muito à “Mamãe”, como o menino de outrora. Como o homem forte que se tornou, inspirado no vigor e resistência maternos. Revivia constantemente seus tempos de fazenda, onde ajudava sua mãe e irmãos, fazia cercas, negociava gado, montava cavalo bravo. Possíveis alegorias diante do fechar da cortina da vida. Senescente, aceitou e preparou-se para a morte, não sem antes fazê-la esperar.

Entre acertos e erros, honrou a vida. Foi humano.

Imagino-o hoje caminhando numa grande fazenda, ao lado de sua esposa, seu filho, rodeado por seus pais, irmãos e amigos que partiram. Imagino-o estudando grandes livros e tendo envolventes conversas com pessoas evoluídas, buscando novos horizontes.

Seu olhar é para o alto, sempre.

João Desbravador Tié, nome que representa sua coragem diante dos percalços na estrada dos sonhos.



Sincero, polêmico e leal. Gostava da casa cheia e mesa farta. Como bom mineiro que era, recebia os amigos sempre com um queijo.

João partiu apenas dois dias após a esposa Marlene Generoso Madureira, com quem viveu por sessenta e dois anos. A história dela também está guardada neste memorial.

João nasceu em Dom Joaquim (MG) e faleceu em Brasília (DF), aos 88 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela sobrinha e pela filha de João, Dalva Maria Madureira Ottoni e Nauali Muhsen Madureira. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Sandra Maia e moderado por Rayane Urani em 29 de janeiro de 2021.