1936 - 2020
Sempre tinha uma história para contar, com direito a trilha sonora.
Foi o primeiro motorista de ônibus de Paracuru, cidade com belas dunas no litoral cearense. Se tivesse que fazer outra coisa na vida, certamente escolheria algo que o fizesse lidar com gente. Gostava de pessoas, do contato com elas, de fazer o dia delas de alguma forma melhor. Detestava as mal-educadas e sem empatia. Não por acaso, quem ganhava seu coração era quem sabia conversar. “Era o que ele mais gostava de fazer”, escreve seu neto Everton.
E sempre tinha o que contar. Nem que fosse preciso inventar. “Meu avô era tipo pescador, sabe? Pra todo assunto tinha uma história”, prossegue o neto. Histórias ricas em detalhes e com direito a trilha sonora, impossíveis de repetir porque só ele sabia narrá-las. À tardinha sentava-se na calçada, pronto para um dedo de prosa com quem chegasse.
Não gostava de permanecer muito tempo fora de casa. Nem era questão de gosto. Era seu maior medo mesmo. No fundo, não suportava ficar longe da esposa, com quem viveu mais de sessenta anos.
José Gilbenê, que vestia tons claros e terrosos, não seria ele mesmo se não tivesse bigode. A tal ponto que, tempos atrás, obrigado a tirá-lo por causa de um acidente na oficina mecânica, evitou sair de casa porque se achava feio sem seu “charmoso bigodão”, lembra Everton.
Seu tique mais marcante era coçar a cabeça, quando nervoso: “No dia em que o recebi no hospital para sua internação, ele coçava bastante a cabeça. Estava claramente nervoso, rezando o terço”, relata o neto. Era um homem de fé. Sua canção predileta era “A barca”, hino católico com que a família se despediu dele.
“Não era o tipo de pessoa que focava muito nos problemas. Foi sempre muito otimista”, prossegue Everton. Mas a perda do pai o marcou bastante. É desse bisavô que Everton acredita ter Gilbenê herdado a integridade do caráter. Os grandes educadores do mecânico e motorista foram seus pais, Francisco e Raimunda. Esta, viva (embora não mais lúcida, desde a morte do marido) aos 105 anos, era frequentemente visitada pelo filho: “Pedia a bênção, cheirava seus cabelos e ficava um bom tempo abraçado com ela. Eu sempre o levava nas visitas à sua mãezinha”, recorda com doçura o afetuoso neto.
Gilbenê era tão paciente que essa virtude era quase um defeito. Não tinha pressa. Talvez porque viesse de um mundo já extinto, mais lento mesmo, deslocado e incompreensível diante da celeridade que a vida moderna impõe. Por isso, imagina Everton, “certamente ele diria que o futuro ideal seria com pessoas menos estressadas e mais amorosas”.
José nasceu em Paracuru (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 83 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pelo neto de José, Everton Barbosa Lucas. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Joaci Pereira Furtado, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 12 de agosto de 2020.