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José Maria Nascimento Silva

1939 - 2020

Homem de muitas qualidades e ofícios, pai amoroso com seu valor reconhecido até o fim de sua vida.

O Senhor José Maria foi casado por 58 anos com Francisca Abreu Silva, com quem viveu um sólido relacionamento de amor e fidelidade. Deixou os filhos Ana, Bárbara e João Batista e os três netos Gabriel, Letícia e Isaac.

Dentre suas muitas qualidades, sobressaiam-se a honestidade, a defesa ferrenha da família, o amor ao trabalho e a benevolência. Um homem que nunca soube o que era preguiça.

Semianalfabeto, podia parecer à primeira vista um homem rude para quem não lhe conhecia, mas, na verdade, ele tinha um coração grandioso. Acolheu a muitos e em sua casa sempre tinha alguém morando além dos seus. Era tanta gente que, às vezes, parecia uma pensão. Ele soube compartilhar o seu pão com o próximo.

Com a casa cheia, ele sabia ser engraçado. Adorava assustar as pessoas quando estavam distraídas assistindo algum filme de terror. Ele colocava a mão no gelo e, na hora de maior suspense, tocava as pessoas com aquela mão gelada.

Na juventude, seu maior sonho era estudar, mas, infelizmente, a vida foi dura demais para ele.

Contava muitas histórias de sua vida e a que mais tocava seus filhos era a de que ele não saiu de Matinha, interior do Maranhão, para aprender o ofício de sapateiro, mas que na verdade ele o fez porque viu uma possibilidade de estudar e realizar o desejo de entrar para o Exército, coisa que não conseguiu devido a sua baixa estatura, com 1,58m.

Com esse sonho desfeito, passou a acalentar o de ir para a escola técnica, que funcionava como um internato, mas sua tia não permitiu.

Saiu então da casa dessa tia e começou a morar na oficina, onde aprendia a fazer sapatos. Ele contava que passou por muitas dificuldades, chegando ao ponto de, às vezes, não ter o que comer. Num determinado momento da vida, a penúria era tamanha que tinha apenas uma única roupa, e para lavá-la, ficava horas e horas no banheiro esperando que ela secasse para poder vesti-la novamente.

Foi a essa altura que jurou para si mesmo que seus filhos estudariam e seriam “doutores”. Carregou durante a vida o sonho de formar seus filhos e o realizou, porque os mesmos puderam lhe dar uma vida digna na velhice que ele tinha muito orgulho.

Aos 40 anos, ocorreu mais uma mudança: agora, do interior para a capital, motivado pelo conhecimento de um episódio triste envolvendo sua filha mais velha que morava em São Luís para estudar. Sabendo que ela estava sendo maltratada na casa de parentes, não teve dúvidas: largou uma vida próspera como sapateiro e seleiro (o melhor da Baixada Maranhense), vendeu tudo o que tinha e foi com a família inteira para São Luís para começar do zero e trabalhar fazendo bicos.

Homem de muitos ofícios, foi sapateiro, pedreiro, pintor e, por último, vendedor ambulante. Pode-se dizer que era viciado em trabalho, um “workaholic inveterado”. Como feirante, ele tinha uma boa relação com seus colegas da feira, e lá ele parecia mais descontraído, chegando a fazer algumas brincadeiras com eles de vez em quando.

Um dos seus maiores temores era que seus filhos se tornassem pessoas preguiçosas e, na tentativa de evitar isso, tinha a mania de acordar muito cedo independente do dia da semana, e toda a casa acordava com ele. Parecendo que de propósito, arrastava o chinelo de uma maneira que não havia quem conseguisse continuar dormindo. Aliás, esse arrastar de chinelos era sua marca registrada, porque de longe conseguia-se saber que ele estava chegando.

Hobbies foram poucos porque sua vida foi vivida de trabalho e mais trabalho. Quando os seus pais ainda eram vivos, ia visitá-los toda noite. Na velhice, sua única distração eram os programas de TV. O Jornal Nacional era o seu favorito, e saber o que estava acontecendo no mundo parecia o empoderar e fazer dele um douto. Também gostava de assistir corridas de Fórmula 1, mas elas perderam a graça para ele desde o falecimento de Ayrton Senna, quando parou de assisti-las.

José Maria deixou muitas histórias engraçadas na lembrança dos seus. Quando começou a apresentar os sinais da senilidade, os filhos insistiam em levá-lo ao médico, e ele sempre saía com esse argumento: “Eu não vou porque eu vou chegar com uma doença e vou voltar com dez. Prefiro ficar só com uma”.

Outra história que faz sua família ainda rir é a de quando sua filha mais velha insistiu para que ele usasse óculos, porque já não estava mais enxergando bem e estava passando troco errado na feira. Quando ele voltou do serviço, estava com o dedo machucado e a filha, preocupada, perguntou-lhe o que tinha acontecido. Ele, rápido nas respostas, respondeu: “Dei uma topada por causa desse maldito óculos, e a culpada és tu que insistiu para eu usar esse trambolho!”

Pai amoroso e esposo fiel, foi muito importante também na vida dos sobrinhos, tornando-se o tio mais especial e próximo de todos porque lhes ensinou a se tornarem pessoas melhores.

O sentimento de gratidão se destaca nos relatos dos familiares e para os quais ele fará muita falta.

Sua excepcionalidade foi reconhecida até o fim de sua vida, quando completando seu 82º ano de vida internado no Hospital Guarás em São Luís do Maranhão, recebeu uma homenagem especial da equipe de saúde.

José nasceu em Matinha (MA) e faleceu em São Luís (MA), aos 81 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de José, Ana Lucia Abreu Silva. Este tributo foi apurado por Larissa Paludo, editado por Vera Dias, revisado por Gabriela Carneiro e moderado por Rayane Urani em 14 de dezembro de 2020.