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José Roberto da Vera Cruz

1951 - 2021

Acordava os aniversariantes da família cantando e exaltando a alegria de estarem juntos e serem seus amores.

Roberto, como era mais conhecido, viveu toda a infância e boa parte da juventude em Belém, com os pais e os irmãos Maria José, Rala, Paulino, Maria Inês e Zequinha.

Quando jovem trabalhava para ajudar a família, mas também gostava de aproveitar a vida. Entre as aventuras, pulava um muro para se encontrar com a futura esposa, Genira, que conheceu no trabalho. Uma vez juntos, assim que nasceu a primeira filha, Milene, mudaram-se para o bairro do Estrela, na cidade de Castanhal, interior do Pará. Pouco depois tiveram outra filha, Jéssica. Nos aniversários e na tradicional festa religiosa do Círio de Nazaré, ele costumava voltar à cidade natal para visitar os familiares.

Quase todo final de semana Roberto levava as crianças — filhas, sobrinhos, filhos dos vizinhos e todos que coubessem no fusca — pra tomarem banho de igarapé e depois se esbaldarem com sorvete. Também gostava de levá-los a um clube da cidade, tal como depois, já na adolescência deles, levava-os para as festinhas. Sempre bem-humorado, aproveitava e se divertia junto. Na família, às vezes era chamado de Homer, por ter certa semelhança com o personagem dos Simpsons.

A chegada da neta Izadora, filha de Jéssica, deixou Roberto superfeliz. Ele era louco por ela: assistia Trolls e Shrek todos os dias, levava pra passear, ensinou a andar de bicicleta, a nadar, e a tinha como filha caçula.

Incansável nos cuidados e no zelo junto à sua família, trabalhou muito para que nada faltasse. Acabou não tendo muitas oportunidades de estudo, porém sempre valorizou e lutou para que as filhas tivessem as melhores condições. Assim, Milene formou-se médica e Jéssica, terapeuta ocupacional. Milene recorda: "No dia em que eu passei no vestibular nós comemoramos muito, o dia todo! Meu pai raspou toda a cabeça dele, já que eu não ia raspar a minha. À noite, fui me deitar e acordei com sede. Quando fui tomar água, vi meu pai sentado ouvindo a gravação do meu nome no listão do vestibular. Ele não me viu, mas eu fiquei observando: ele ouvia meu nome, voltava a fita da gravação e ouvia de novo. É uma lembrança muito forte pra mim. Acho que foi o dia da minha vida em que eu me senti uma pessoa que fez algo importante!" A sensação feliz dessas conquistas ainda foi reforçada depois, ao dançar junto das filhas nas formaturas.

Roberto puxou à mãe, Maria da Glória, no gosto e na aptidão culinária; e era muito cuidadoso e aprecidor de futebol tal como o pai, José Agostinho — além do amor pelo time paraense Paysandu. E gostava de estar sempre vestido com roupas do Clube, tinha inclusive várias camisas.

Trabalhou de taxista e de cobrador de ônibus, mas foi com seu Avacalhados Bar — um boteco bem conhecido nas redondezas, instalado num puxado de um cômodo da própria casa — que conduziu a maior parte da sua vida profissional por cerca de três décadas. Por ser muito animado, engraçado — e também um pouco destrambelhado e bagunceiro —, tanto o bar, quanto o nome do bar, eram a cara dele. Às vezes tentava consertar as coisas e quebrava ainda mais... mas nada abalava seu alto-astral!

No bar, tinha de tudo um pouco: além de bebidas e petiscos, vendia de mantimentos a produtos de limpeza, fazendo as vezes de pequena mercearia. E nos dias de jogos, preparava a TV, estendia um bandeirão do seu Paysandu e concentrava a turma para assistir.

Como a esposa trabalhava fora, o empreendimento foi a maneira que encontrou para conseguir conciliar o trabalho para reforçar a renda familiar com a atenção e dedicação às filhas: podia levar e buscar na escola, andar com elas de bicicleta e deixar brincarem por perto.

Festeiro que era, criou um bloquinho de carnaval do Avacalhados Bar, que ele amava e do qual se orgulhava. Organizava tudo, inclusive o abadá. E tinha um ídolo: o cantor Haroldo Reis, que, certa vez, gravou uma marchinha para o seu bloco, tornando este um dos dias mais felizes de sua vida. "A vida dele era como umas férias. E olha que ele trabalhava de domingo a domingo", é o que diz a esposa, Genira.

No bar, ele costumava fazer petiscos simples, como salsicha frita, mas era em casa que os dotes culinários se faziam mais presentes e marcantes. Caranguejo e miúdos de boi sempre suculentos; a Feijoada então, foi o que mais deixou saudade. A relação com o feijão era forte, pois costumava dizer que não tinha mal ou doença que o feijão não resolvesse.

Roberto, sempre foi de ajudar a todos e de forma natural e espontânea. Uma história, que reflete sua bondade, foi quando deu todo amparo e assistência para um vizinho paralisado por sequela de AVC, inclusive dando banho, por cerca de três anos. Sua própria família só descobriu depois, por acaso, em conversa com a esposa do vizinho. Ele dizia não ser nada demais... ser essa bênção na vida de pessoas que nem eram tão próximas.

Amigo do padre local, Roberto lhe dava um refrigerante sempre que ele passava na rua de sua casa. Ao adoecer e ficar internado, ficou também preocupado com a possibilidade de os alimentos se estragarem. Então, pediu à família que doasse tudo do bar/mercearia para igreja, pois o padre ia achar para quem doar, para que nada fosse perdido.

Amava ir com a esposa, as filhas e a neta, quase todo meio de ano, para as praias do litoral paraense, principalmente as de Marudá e Salinas.

Gostava de ouvir música, de preferência com volume no alto, e unia o útil ao agradável ligando para a rádio, mandando beijo para a família e alertando a todos para ouvirem. E nos aniversários de cada um era uma festa já desde o despertar, quando acordava cantando a música "Parabéns, Meu Amor", de Rita de Cássia, com trechos marcantes: "Hoje é o seu aniversário, de parabéns estou eu, por te conhecer, por ter alguém como você e poder compartilhar tudo a seu lado..." Além dos parabéns diversas vezes ao dia tinha como marca registrada dar um "tapinha" nas costas, que dava em todo mundo, nem sempre suave, mas era a sua forma de demonstrar afeto.

"Minha irmã Jéssica se parece muito com ele, no jeito, na espontaneidade e no estar constantemente feliz", diz Milene, achando graça. "Já eu, não. Mas sempre tivemos uma grande conexão e compreensão. Eu sentia que, por mais que ele não compartilhasse dos meus gostos, ele olhava para as coisas que eu amava com amor também".

Como homenagem póstuma, uma igreja da cidade fez um projeto em que familiares de vítimas da Covid-19 plantaram árvores, cada uma com o nome do ente querido — uma bonita celebração.

Milene conclui: "Fomos muito abençoados pelos anos que caminhamos juntos por aqui, em uma relação preciosa! Meu pai era uma grande pessoa. Os planos de Deus são sempre perfeitos, mas fica um vazio, uma dor. Compartilhar sobre ele é um carinho no coração, assim como é bom saber que ele vai ser sempre lembrado".

José nasceu em Belém (PA) e faleceu em Belém (PA), aos 69 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de José, Milene Vera Cruz. Este tributo foi apurado por Peter de Souza, editado por Peter de Souza, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 21 de fevereiro de 2022.