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Leonardo Bezerra de Freitas Junior

1960 - 2020

Mesmo não sendo compositor, dedicava músicas de presente para quem amava.

A sobrinha de Leonardo, Ana Claudia, inicia a homenagem contando um episódio:

"Entrei com o meu tio na padaria recém-inaugurada e ele fez o pedido de praxe: café preto. Imediatamente, a moça do balcão ligou o piloto automático:

- Açúcar ou adoçante?
- Adoçante.
- Quantas gotas?
- 47.

A moça congelou. 'Er... Quantas?'

- 47 - ele repetiu, sem titubeios.

O movimento do vidrinho de adoçante continuou suspenso no ar até o meu tio dar um sorriso torto de canto de boca e a moça entender que estava diante de um piadista excêntrico. O sujeito era capaz de falar as coisas mais estapafúrdias com a sisudez do STF e muita gente demorava em entender aquele senso de humor desconcertante."

Leonardo tinha o talento improvável de escolher as melhores poltronas do mundo. Nunca as mais vistosas ou coloridas, mas sim, as compactas, que cabiam em qualquer lugar e acolhiam os moradores cansados como se fossem um abraço. "Certa vez, herdei uma delas e quis até levar no avião; não deixaram. Olha, o camarada entendia de ergonomia moveleira", relembra Ana Claudia.

Ela conta que, de todos os parentes, Leonardo era o único que provavelmente seria mais feliz no campo do que na cidade, criando bicho, "passando o dia no lombo de um cavalo, todo bonitão de chapéu de couro". No entanto, tornou-se advogado e passava horas dando orientações para quem não podia pagar por elas.

Ana Claudia diz que ele lhe falava, com assombro, da fidelidade das mães trabalhadoras com filhos detentos, que "parcelavam fianças em 400 vezes", mas não deixavam seus rebentos na mão. "Meu tio tinha um olhar compassivo para quem a vida reservou sua pior faceta e fazia um bocado pelos outros, sem alarde."

Teimoso, teimoso, teimoso, ele resistia em pedir ajuda quando precisava, não revelava o que sentia e ia embora sem dar muita explicação. Amava Curitiba, curtia doces, caminhava quarteirões sem reclamar, conhecia todo mundo na cidade onde vivia e só planejava viagens de carro. Ele era forte e tinha muita vida pela frente.

"Tio, você tem o nome do meu filho e leva parte de nós para onde for. Vá com Deus, vá em paz. No fundo, acho que nós dois só queríamos mesmo aproveitar a tarde amena e escolher umas poltronas maravilhosas. Eu te amo e prometo pedir 47 gotas de adoçante na primeira oportunidade. Vou sentir mais saudades do que você possa imaginar", conclui Ana Claudia.

Leonardo nasceu em Belém (PA) e faleceu em Porto Nacional (TO), aos 59 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela sobrinha de Leonardo, Ana Claudia Freitas Pantoja. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Júlia de Lima, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 12 de setembro de 2020.