1945 - 2020
Um de seus prazeres era contar causos. Até nas histórias tristes ela colocava uma pitada de humor.
Uma mulher doce, que desde menina aprendeu a beber do bom da vida para ficar bem e sorrir. Até mesmo diante dos desafios que a vida lhe apresentou durante seus setenta e quatro anos, a alegria sempre a acompanhava, acontecesse o que acontecesse.
A filha de Seu Antônio e Dona Laudimira nasceu na zona rural da cidade goiana de Cristalina. Precocemente, perdeu a mãe. Com o pai e mais cinco irmãos, precisou seguir a vida, marcada primeiramente pelas brincadeiras nos quintais e depois pelo trabalho no cuidado com as plantas e animais que lhes davam o sustento. Num tempo em que todos precisavam cuidar de todos, a irmã mais velha, Dona Fiúca, foi como uma mãe dos irmãos. E neste ambiente, Dona Lídia aprendeu a dividir carinhos e afetos.
O estudo acontecia na fazenda, onde havia uma escola multisseriada para ensinar as letras aos pequenos do lugar. Depois das aulas, era momento de voltar para casa e ajudar no que fosse necessário na rotina da fazenda.
Na adolescência, provavelmente para colaborar com o orçamento doméstico, Lídia trabalhou em lojas do comércio de Cristalina. Ela contava orgulhosa que o tratamento que recebia de Seu Azevedo, dono de um dos comércios locais, era muito respeitoso e chegava até mesmo a ser carinhoso. Era como se fosse uma espécie de segundo pai para ela, de tão cuidadoso. Um tempo depois, foi morar em Anápolis, também em Goiás, na casa da madrinha de batismo, Dona Genoveva.
Ainda bem moça, Dona Lídia casou-se com Seu Djalma. Como costume da época, os dois mantiveram uma relação respeitosa, mas sem muita afetividade. Juntos, geraram Vânia, Paulo César, Silma, Cébio e Orestes. Depois vieram quinze netos e seis bisnetos.
Vivienne, a primeira neta, foi recebida com muita felicidade e ao longo da vida foi desenvolvendo um carinho muito especial pela avó. "Eu queria ter um coração como o da minha avó. Porque ela era capaz de tratar todas as pessoas com muito carinho e não guardava raiva de ninguém”, diz Vivienne.
Um exemplo disso era a dedicação de Dona Lídia para com os filhos. Certa vez, num momento de fragilidade da filha Vânia, a mãe zelosa ficou por trinta dias no hospital com ela até sua inteira recuperação. Em outras palavras, Dona Lídia era uma mãe dedicada ao bem dos filhos.
Vivienne lembra ainda das conversas que mantinha regularmente com a avó desde pequena. “A gente falava sobre questões sérias e coisas de adulto”, completa. Foram muitos os conselhos de Dona Lídia, que contribuíram para a educação de Vivienne e de outros parentes.
Quando, por problemas numa gestação, a neta Vivienne não chegou a ter um de seus filhos, foi Dona Lídia o ponto de apoio e amparo. Algum tempo depois da perda do bebê, uma planta bonita e grande brotou no quintal e Dona Lídia dizia, com um sorriso no rosto, que “era sinal de que o bisneto tinha ido para o céu".
O neto Victor Hugo era motivo de muita felicidade para Dona Lídia. Formado Técnico em Enfermagem, ele atuava no mesmo hospital em que ela várias vezes buscou tratamento. E no momento das consultas, fazia questão de anunciar, para médicos e outros funcionários da casa de saúde, que Victor era neto dela dizendo: “Esse aí é meu orgulho”!
Um dos prazeres de Dona Lídia era contar seus causos. Às vezes engraçados; outras vezes com duplo sentido; noutras vezes, tristes. Com seus gestos e trejeitos, complementava a narrativa. Até mesmo nas histórias tristes ela conseguia algum modo de dar uma pitada de humor e leveza na narração do acontecimento.
A rotina de Dona Lídia era demarcada pelos horários e refeições do dia. Acordava cedinho e tomava seu café com quitandas que ela mesmo preparava. Um pouco depois já era hora de picar verduras e legumes para preparar o almoço, comer uma fruta e em seguida ligar o fogo e esquentar as panelas. À tarde, gostava de tomar banho mais cedo e depois sentar-se para assistir televisão enquanto passava seus cremes hidratantes.
Falando de sabores, Vivienne tem na memória a delícia dos “quebradores” (biscoitos doces de polvilho que são crocantes, mas desmancham na boca) feitos por Dona Lídia. Aos domingos, para receber os familiares, preparava o tradicional “molho de frango” (um frango cozido com açafrão e outros temperos). Mesmo em alguma situação especial, quando a família resolvia fazer um churrasco, Dona Lídia não abria mão de preparar o franguinho.
Num desses encontros familiares um fato muito divertido aconteceu: Dona Lídia sabia que a neta Vivienne gostava de comer a sobrecoxa do frango. Quando percebeu que Marcelo, um outro neto, pegara o desejado pedaço, foi até ele e disse que ele precisava devolver a sobrecoxa “porque é da Vivi”. Como não poderia deixar de ser, Vivienne ficou totalmente sem graça, mas a autoridade de Dona Lídia falou mais alto. Tudo resolvido, o fato virou motivo de piada e todo mundo começou a dizer a Marcelo: “Se fosse comigo eu não aceitava isso”!
Dona Lídia era caseira ao extremo. Por conta disso, mesmo tendo muita fé e sendo católica, quando mais velha não ia mais à missa. Não ia sequer visitar a irmã Fiúca, que morava a uma quadra da casa dela. Se não fosse a inciativa da irmã de passar por lá em alguns dias em que ia à igreja, elas passavam longas temporadas sem se ver. Em resumo, quem quisesse vê-la precisava ir até a casa dela.
A chegada das visitas era quase sempre marcada por um momento cheio de delicadeza. Vivienne conta que quando a avó ouvia o barulho do portão ia logo para o corredor da casa. E com as mãos juntas na frente do peito e um sorriso largo no rosto celebrava a chegada da visita.
O sorriso dela foi sempre um companheiro marcante. Vivienne descreve que era “um sorriso verdadeiro”, desses que quem vê sabe que de fato reflete uma felicidade interior, atitude que Dona Lídia conseguiu manter durante toda a vida. E como já foi dito, depois era momento de muita conversa, causos e novos sorrisos.
Havia uma coisa que não agradava a Dona Lídia: que falassem mal de alguém da família. Ela não admitia que uns criticassem problemas ou atitudes de outros. Vivienne explica que ela “cortava no ato”, ou seja, de forma direta e categórica. Assumia o papel de defensora e, sem rodeios, interrompia a fala de quem estivesse infringindo a regra de respeitar o fato de que ninguém é perfeito e cada um de nós tem seus defeitos.
Dona Lídia segue viva no pequeno terço cor-de-rosa que ainda hoje descansa na cabeceira da cama. Nas memórias de seu sorriso verdadeiro, que sempre alegravam a casa. Na saudade dos sabores que preparava.
Lídia nasceu em Cristalina (GO) e faleceu em Luziânia (GO), aos 74 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Lídia, Vivienne Fernandes do Prado. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 13 de julho de 2022.