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Luiza Martinho Soalheiro

1928 - 2021

Perto dela, a vida era sempre muita fartura e nenhuma frescura.

Esta é uma homenagem de Bárbara Soalheiro para sua avó:

Do que mais lembro é do quanto podia chegar em sua casa – um apartamento pequeno no bairro Cidade Nova, em Belo Horizonte – e fazer o que quisesse. Não havia qualquer brinquedo, mas também não havia nenhuma proibição. Todos os potes, todas as gavetas, todos os tesouros ─ valiosos ou não ─, estavam disponíveis. E eu e meus irmãos fazíamos a festa.

Nossa atividade favorita era misturar todos os ingredientes que víamos na cozinha (quando já jovem-adulta descobri quanto custava uma garrafa de azeite e a primeira coisa em que pensei foi na generosidade da minha avó), encher todas as forminhas de gelo e deixar no congelador. Na semana seguinte, quando voltávamos, nossas experiências ainda estavam lá. Não me lembro da minha avó ter jogado no lixo nenhuma criação nossa.

Nas férias, às vezes eu passava dias inteiros destruindo coisas que ela adorava – uma vez usei os dentes para fazer mamilos em três esculturas de barro pintadas de branco que minha tia Elzinha tinha trazido do Recife ─ e nunca fui repreendida. Essa possibilidade de ser quem eu quisesse e de fazer o que eu quisesse, sem qualquer julgamento moral e sem jamais escutar um não, era a vida perto da minha avó.

Quando ela completou 90 anos, minhas tias organizaram uma grande festa. Fico feliz até hoje por ter feito caber na agenda esse bate e volta com meus três filhos ao Brumal, cidadezinha perto de Belo Horizonte, onde, por volta de 2015, ela comprou um sítio. Foi uma celebração linda demais, como os Coelhos sabem fazer. Nenhuma frescura e muita fartura, numa festa que começou às 9 da manhã com uma missa na igreja da cidade e que terminou sabe-se lá quando (eu fui embora antes, porque, aos 40 já não me sentia tão jovem quanto a minha avó).

Minha parte favorita foi voltar da igreja e encontrar uma mesa posta de café e quitandas. Só quem é mineiro sabe o que é uma mesa de quitandas. Só quem conheceu minha avó Lulu sabe o que é uma mesa de quitandas dela. Foi a coisa mais chique que já vi: bolo e biscoito e broa e garrafas de plástico, cheias de café. Nenhuma pompa. Minha tia Nina contou que essa mesa de quitandas tinha sido o único pedido da minha avó para a festa. O restante poderia ser decidido pelos mais novos.

Há fatos muito mais marcantes sobre a vida da minha avó, que foi professora, grande entusiasta de novas tecnologias e fã de futebol. Não os conheço em detalhes. A partir da adolescência, convivi pouco com ela e raramente penso: isso herdei da minha avó Lulu. Mas hoje, escrevendo esse texto, lembrei que só dei uma grande festa na vida: meu casamento. E, pra surpresa da turma da produção, encomendei de sobremesa uma mesa de doces mineiros: doce de leite, doce de abóbora, doce de mamão, queijo fresco... Nenhuma frescura e muita fartura.

Acho que talvez eu tenha, sim, herdado um pouco da minha avó.

Luiza nasceu em Virginópolis (MG) e faleceu em Belo Horizonte (MG), aos 92 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Luiza, Bárbara Soalheiro. Este tributo foi apurado por Jonathan Querubina, editado por Lígia Franzin, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 28 de março de 2021.