1945 - 2020
Gostava de escrever e construir mosaicos ao som de músicas antigas.
Ele apelidava a si mesmo de Luizão — Luizão, o Bom — e falava para os netos: “Vem com o Luizão” quando não queria ser chamado de vovô. Todo mundo que o conheceu sabe que ele brincava assim. Para a mãe e a única irmã ele era o Tato: começou a ser chamado assim pela avó quando era pequeno e acabou virando um apelido familiar.
Como único homem da família, apesar de parecer ser o preferido, era muito cobrado e impedido de fazer algumas coisas que teria gostado de fazer. Ele contava que era quieto, introvertido e não fazia muita arte, mas dava outro tipo de trabalho; queria sair logo cedo, essas coisas assim.
Foi um torcedor fanático do Corinthians, influenciado pelo avô, que cuidou dele a maior parte do tempo já que seu pai morrera muito cedo. Gostava de assistir aos jogos do time e se quisesse brigar com ele era só falar mal do Timão. Enquanto morava em São Paulo, levava as filhas ao estádio e às comemorações, e toda vez que seu time vencia ele as vestia a caráter e saía com elas pelas ruas tocando a buzina do carro.
Luizão teve muitos amores na vida. Casou-se pela primeira vez muito jovem, aos 22 anos; a esposa, Cleide Isabel, tinha 18. Ficaram juntos por seis anos e tiveram as filhas Lia e Liandra. Depois da separação continuaram amigos por toda a vida, sem impedimentos para que as meninas estivessem sempre com ele. Com a segunda esposa, Estela, ele ficou casado por aproximadamente doze anos e as portas de sua casa estiveram sempre abertas para as filhas, que adoravam ir para lá, porque podiam fazer o que quisessem.
Finalmente, na maturidade, reencontrou Thania — um amor da juventude que renasceu cinquenta anos depois. Como no enredo de um filme eles se reconectaram via internet. Thania foi para Londres, onde viveram felizes por vários anos até que ela descobriu um sério problema de saúde e decidiu voltar ao Brasil para ficar mais próxima da família durante seu tratamento. Eles continuaram se comunicando e ela ficou muito triste com a notícia de sua morte.
Luiz foi corretor de imóveis e vendedor autônomo até se aposentar aos 40 e poucos anos por motivo de saúde. Era um bom vendedor e revendia coisas que comprava no supermercado ou na padaria com esse objetivo. “Eu lembro que ele vendia chupetas, mas ele não vendia só isso; vendia muitas coisas, mas na minha memória ficou mais a chupeta”, conta a filha Lia.
Depois de aposentado Luiz costumava ficar em casa porque não podia fazer muito esforço físico. Enquanto morou no Brasil, passou a viver basicamente de sua pequena aposentadoria. Depois que foi para Londres morar com as filhas fez alguns bicos, como limpeza em restaurantes de navios, e conseguiu aposentar-se por lá também. Assim, passou a receber duas aposentadorias e sua vida melhorou. Ele gostava muito de viver em Londres, onde os idosos são muito bem assistidos, e não queria sair de lá por nada.
Luiz era muito caseiro. Não era de muitos amigos e apreciava ficar sozinho fazendo seus mosaicos de espelho. Enquanto ainda conseguia sair de casa, fazia reabilitação. Mas na maior parte do tempo ficava no computador, procurando aprender tudo o que era novo, conversando com as pessoas e arrumando namoradas. Ele era tranquilo, amoroso e sempre fazia o que podia pelas pessoas, especialmente por suas duas únicas filhas. Colaborou até o fim da vida com os Alcóolicos Anônimos mesmo tendo abandonado o vício da bebida há mais de vinte anos.
Fora isso, procurava sempre ajudar as pessoas que, por exemplo, chegavam em Londres e ficavam sem saber o que fazer, muitas vezes sem um lugar para dormir. Sempre que via que alguém precisando de algo, ele procurava amparar, conversar e se colocava à disposição para ajudar no que pudesse. Depois que Luiz faleceu, ao serem examinadas suas redes sociais, percebeu-se que tinha uma intensa vida social online, com muitos amigos e amigas virtuais, inclusive do Brasil, com os quais mantinha uma boa relação.
Luizão tinha o dom da escrita, poderia ter sido um bom advogado ou escritor, se tivesse estudado, e usava essa aptidão para escrever poemas. A filha já conhecia alguns — e eram lindos — mas só veio a saber de todos depois que o pai faleceu, ao organizar seus pertences. Ele não tinha por hábito presentear a família com eles e limitava-se apenas a publicar alguns nas redes sociais. Lia conta que muitas das coisas que hoje conhece sobre a vida do pai foram descobertas nos seus poemas, e que eles parecem ser a maneira que ele encontrou para mostrar sua essência.
Outra expressão artística que ele desenvolveu foi a confecção de mosaicos de azulejo. No início eram cópias de modelos vistos na internet. Depois passou a fazê-los quando estava inspirado, seguindo sua criatividade, e ficavam lindos como seus poemas. Muitos ele usou para presentear filhas e netas, alguns ele vendeu e outros deixou como herança, que elas dividiram entre si.
Sensível, gostava muito de música, principalmente das mais antigas do Roberto Carlos, que ele vivia cantarolando. Tinha uma voz muito bonita e quando jovem chegou, inclusive, a utilizar esse dom para atuar como locutor. Lia se recorda: “A última música que escutei ele cantar foi ‘Esse Cara Sou Eu’. Essa ele cantou até o fim”, lembra a filha.
Luiz era brincalhão e amava contar piadas que, mesmo quando repetidas, faziam os ouvintes rirem. Possuía uma força de vontade e uma perseverança imensa, que o levavam a conseguir realizar coisas que seriam bem difíceis para muitas pessoas, como, por exemplo, deixar de fumar e de beber. Era de uma lealdade sem igual para com as filhas e, ao contrário de muitos pais que abandonam os filhos quando se separam da esposa, ele sempre esteve por perto, disponível e pronto para ajudar no que fosse preciso. Além disso, era pródigo em elogios às suas meninas.
O sonho que Luiz alimentou a vida toda de ser pai de um menino "realizou-se" quando a filha Liandra, aos 18 anos, lhe deu um neto. Luiz ficou apaixonado pelo menino e viveu uma mistura de felicidade e superproteção. Vivia alertando: “Esse menino vai afogar!" "Esse menino não pode ficar no sol", mesmo que o netinho estivesse sendo bem cuidado pelos outros adultos ao redor. Viveu com os cinco netos a mesma relação de amor, cuidado e proteção que dispensou às filhas. Sempre que possível ele os levava para sua casa, para passear nos parques e frequentemente os presenteava na medida de suas possibilidades.
Luiz gostava de cozinhar, usando o que aprendeu com sua ascendência italiana. Sabia fazer um inesquecível macarrão com molho de tomate. Fazia também um nhoque e um bife à milanesa que todos gostavam, mas parou de cozinhar quando problemas de saúde começaram a impedir que ele ficasse muito tempo em pé. Gostava de comer bem e, por isso, os programas da família resumiam-se a receber as filhas em casa, a sair para comprar alguma coisa ou então comemorar os aniversários dos netos em algum restaurante — e ele sempre tinha um bom lugar para indicar. Para ele, estar com a família ou ter alguma coisa programada era motivo de visível felicidade.
Como ninguém é perfeito, ele também tinha o seu lado ranzinza. Lia conta que ele sempre tinha algo para reclamar: “'Esse lugar aqui não tá bom'; 'essa pessoa assim'; 'esse barulho está me enchendo'; 'nossa, esse garçom tá tratando a gente mal'. E a gente dizia: 'Pai, calma tá tudo bem'; 'ô pai, menos'; 'ô pai, não faz isso', e logo em seguida ele já estava conversando com o garçom, 'de boa'”.
Luizão foi um pai extremamente amoroso durante toda a vida, como se recorda Lia: “Nós éramos a vida do meu pai, ele vivia basicamente em função da gente. Quando a gente ia para a casa dele, ele ficava em torno de nós e só fazia a nossa vontade. Ele dizia: ‘Vamos sair’ e a gente ia, naquela época, para os Play Centers... e para os lugares onde ele nos levava para comer os doces que a gente gostava e era só alegria”.
Lia continua: “Como ele era paulistano, eu achava que ele nunca fosse sair de São Paulo por nada. Quando minha mãe nos levou para Campo Grande, eu tinha uns 14 anos já, ele não sossegou sozinho em São Paulo. Ele tinha se separado da segunda mulher e foi morar lá para ficar com a gente. E ele não só morava em Campo Grande, mas morava 'tipo' no mesmo bairro; ele vinha ficar sempre bem perto da gente”.
“Éramos muito próximos e, no final, quando morávamos em Londres, era eu quem cuidava dele para tudo, inclusive quando ia aos médicos. Como ele não sabia inglês, eu fazia as coisas pra ele. Fiz tudo o que pude pelo meu pai, para tudo eu estava junto dele. No último ano o convívio foi bem intenso, principalmente quando chegou a Pandemia. Eu ouvia falar ‘idoso é perigoso’, ‘quem tem problema é perigoso’ e ele tinha um monte de problemas de saúde, ele estava indo ao hospital a cada três meses, ficava dois meses internado... e eu ficava ‘meu Deus, vai ter uma hora que meu pai vai precisar ser internado de novo’ e eu não queria que isso acontecesse”.
Lia se recorda de muitas histórias vividas com o pai e do companheirismo que se fortaleceu ainda mais em seu final de vida, principalmente quando ele não podia mais sair e ficavam muito tempo juntos em sua casa. Uma dessas histórias tem destaque especial em sua memória. Foi quando, aos 18 anos, ganhou de presente uma estadia num hotel de luxo em São Paulo com direito a um acompanhante. Muito medrosa para fazer as coisas sozinha, ela levou uma prima consigo, mas essa moça acabou por deixá-la sozinha. Com muita dificuldade e sem conseguir localizar o pai em sua casa — porque também não havia nem telefone disponível —, conseguiu uma carona até o hotel e subiu desesperada para seu quarto. Ainda chorava quando ligaram da portaria dizendo que havia um homem procurando por ela e que dizia ser seu pai. “E ele chegou bem na hora, parecia que ele sabia o que eu estava passando. Até hoje eu lembro do abraço que demos naquela hora, ficou marcado na minha memória. Ele falou: ‘Claro que eu ia vir atrás de você, cê tá doida?’ Aí ele ficou comigo no hotel, nós aproveitamos a estadia, eu conheci tudo lá e ele me levou para a casa dele no dia seguinte e eu acalmei meu coração”.
Essa foi a vida de Luizão, que pode ser resumida na forma especial como ele cumpriu o seu papel de pai: aquele que sabia se fazer presente na hora certa.
Luiz nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em Londres UK, aos 74 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Luiz, Lia Ferraz. Este texto foi apurado e escrito por , revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 8 de janeiro de 2022.