1934 - 2020
Jogava dominó como ninguém e, assim como uma de suas rosas, andava sempre perfumado.
Manoelito saiu de casa ainda novo, logo após a perda de sua mãe, e foi buscar outra vida em São Paulo. Durante muito tempo morou em pensões e foi juntando o seu dinheiro para, enfim, conquistar a tão sonhada estabilidade. Não foi fácil. Ele passou por momentos árduos, mas que o fizeram valorizar ainda mais cada vitória.
Ao longo do caminho, em uma das idas a Vitória da Conquista, sua cidade natal, conheceu uma jovem pela qual se apaixonou perdidamente. Maria de Lourdes foi amor à primeira vista e não deu outra, foram casados por 48 anos. Viviane, uma de suas filhas, conta que ele costumava brincar devido à diferença de idade de 18 anos: ‘Casei com a novinha para ela cuidar de mim quando eu ficar velho’.
Juntamente com a sua joia preciosa, tiverem André (que partiu ainda com nove meses) e as quatro meninas: Virgilina, Viviane, Roberta e Renata. Sendo o único homem na casa, Manoelito era muito cuidadoso com elas e se preocupava com qualquer acontecimento fora do normal. Até uma simples dor na unha era motivo para ele ficar amuado e tentar socorrer como podia.
Sempre que algum conterrâneo precisava de um lugar para ficar em São Paulo, Seu Mané abria as portas de sua casa e oferecia abrigo. “Ele ajudou muita gente que vinha da Bahia pra cá e não tinha onde ficar. A gente saía da nossa cama para as pessoas dormirem, a nossa casa andava cheia. Meu pai era muito generoso, acolhedor”, comenta sua filha Roberta.
Além de ter um coração enorme, Manoelito era muito brincalhão e piadista. Adorava conversar e se permitia perder a noção do tempo, especialmente se o papo estivesse bom. Se pudesse, falava por horas e horas. Dono de uma alegria descomunal, suas brincadeiras sempre divertiam quem estava em volta. Ele não falava palavrão, mas o volume de sua voz com certeza ultrapassava os decibéis permitidos.
"Meu pai tinha um celularzinho pequeno – porque ele não enxergava direito –, aí todo mês ele colocava 25 reais de crédito e ganhava de bônus da operadora seis mil minutos para fazer ligações. Então ele queria gastar esses minutos falando o dia inteiro. Todo o dia ele ligava para as pessoas, para a irmã dele na Bahia, para os outros irmãos. Um monte de gente ocupada e ele querendo gastar os minutos por causa da promoção. Ele adorava conversar e, por ser o irmão mais velho, ele se preocupava, queria saber da família. Até mesmo a gente, quando comentava que precisava ligar para alguém, ele já falava ‘Então liga do meu celular que eu tenho não sei quantos mil minutos de bônus pra ligação.’", singularidade nostálgica lembrada por Viviane.
Manoelito conquistou a sua independência ainda novo e era algo de que se orgulhava muito. Com o passar dos anos, apresentou dificuldades auditiva e visual, mas que não o impediam de fazer o que quisesse, tampouco de enxergar e ouvir com o coração. “Ele tinha o costume de acordar de manhã e, mesmo sem enxergar direito, ia pra rua, na lotérica, no mercado, ia jogar nas maquininhas. Aí voltava pra casa, tirava um cochilo e ia pra rua de novo. A gente ficava preocupada, mas ele soltava um ‘Não esquenta a cabeça eu sou cobra criada’ ou então 'Não vou deixar para amanhã o que eu posso fazer hoje.’”, relembra Viviane.
Seu Mané era teimoso e bem sistemático. Embora adorasse comer e fosse bem guloso, convidá-lo para comer fora de casa, em restaurantes, era motivo para despertar o nervosismo nele. Outra coisa que o tirava do sério era o ponteiro do relógio marcar 12h01min e o almoço ainda não estar servido, isso o deixava muitíssimo irritado.
Extremamente regrado e com uma memória impecável, Seu Mané tinha um horário certinho para tudo. A hora do dominó era um momento que lhe arrancava largos sorrisos. Viviane conta: “toda tarde – por ele, jogava o dia inteiro – a gente tinha que montar a mesinha de dominó pra ele jogar. Pegava as filhas, netas, genros e esposa para todo mundo jogar com ele.”
Estar reunido com a família bastava; seu aniversário, então, era o dia mais feliz do ano. Sonhava em voltar para a Bahia e comprar um condomínio com várias casas, pois, assim, as suas meninas ficariam bem pertinho dele. Todo mês ele fazia o jogo na lotérica e nunca perdeu a esperança de ganhar novamente e realizar esse desejo, deixando todas as filhas bem.
Elas o acompanhavam para onde quer que fosse, assim como o seu radinho de pilha, que ficava no último volume durante o dia e embaixo da orelha na hora de dormir. Cheio de manias, adorava tomar o café bem quente e bem docinho. Estava frequentemente em busca de umas moedinhas para comprar balas de hortelã. Era apaixonado por Fórmula 1 e pelo Tricolor Paulista, acompanhava todos os jogos.
As lembranças que construíram preenchem o coração de sua família. Viviane revela mais uma das paixões de seu pai: “era apaixonado pelo pé de rosas que plantou no quintal de casa. Todas as vezes que a rosa desabrochava e ficava bonita, ele dava para uma de nós. Às vezes, ele ia pra rua e a gente ficava brava – era mais preocupação dele se machucar, na verdade –, então ele aparecia com uma rosa colhida do pé e dizia ‘Trouxe essa rosa pra você, olha que bonita’; a gente se emocionava na hora e ele ficava muito feliz.”
E, assim como uma de suas rosas, Manoelito andava sempre perfumado. A sua essência poderia ser vendida por aí com o aroma da saudade.
Manoelito nasceu em Vitória da Conquista (BA) e faleceu em São Paulo (SP), aos 86 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelas filhas de Manoelito, Viviane Soares Moitinho e Renata Soares Moitinho. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Marina Teixeira Marques, revisado por Tatiani Baldo e moderado por Rayane Urani em 16 de maio de 2021.