1940 - 2020
“A comida estava boa, né?” assim se justificava, quando exagerava um pouco no vinho.
O texto a seguir, enviado pela filha Manuela - Manu, para o pai - é um depoimento tão completo, tão afetivo, que em si, homenageia e apresenta esse homem de história de vida admirável. Apreciador, como ela conta, de bom vinho e boa comida, o "Carequinha" dos filhos:
"Português de uma família de 11 filhos, nascido em Sobrado, uma pequena e antiga vila rural da área Metropolitana do Porto.
Em busca de oportunidades, decidiu desbravar o mundo desde cedo. Foi enviado pelo exército para Angola, onde serviu alguns anos até sua independência. Pouco tempo depois do retorno à terrinha, conseguiu um trabalho como caminhoneiro na África do Sul.
Ele contava que cruzava o país inteiro sozinho no seu caminhão, vendo girafas, leões e todos os animais da savana. Dizia ser uma paz, tamanha solitude. Quando o pneu do caminhão furava, tinha que esperar alguém passar na estrada para pedir ajuda para realizar o reparo. Entre uma cidade e outra, parava para jogar um carteado e fumar um cigarro.
E assim foram mais dez anos de sua vida. Era tempo de mudar, e a oportunidade estava no Brasil, onde tinha um tio e dois irmãos. Trabalhou muito, estudou à noite e concluiu o ensino médio com excelência. Sempre falava sobre suas notas boas, notável sua habilidade na língua portuguesa, história, geografia e matemática.
Foi no Rio de Janeiro onde fincou suas raízes, empreendeu com sucesso e formou uma família. Teve três filhos, de dois relacionamentos: Eduardo, Manuela e Alexandre. Parou de fumar no nascimento da sua segunda filha e nunca mais voltou. Nunca deixou faltar nada para nenhum deles. Sempre foi um grande exemplo de responsabilidade, honestidade e de compromisso com a família. Passou pela dor de perder um filho e sua esposa.
De personalidade forte, calado e de poucos amigos. Era preciso chegar mais perto para enxergar seu enorme coração e seu senso de humor. Sempre fazia piadas sobre portugueses, entre outras bem bobas e ria sozinho (rs). Sempre foi exigente e rígido com os filhos, pedia para conjugar verbo na mesa de jantar, calcular a tabuada e lembrar dos tais anos históricos.
Já aposentado e com tempo, pode aproveitar mais os filhos e fazer o que mais lhe agradava. Tomar um bom vinho, comer um bom bacalhau e assistir a um jogo de futebol. Nessa altura do campeonato, o Porto já dava mais alegrias para ele que o Vasco da Gama, seus dois times de coração. Ele assistia a todos os jogos de futebol, um verdadeiro amante do esporte. A TV da sala já tinha programação certa, e ali os filhos se reuniam e passavam as tardes de domingo juntos.
Em seus últimos anos, enfrentou grandes batalhas no campo da saúde e resistiu bravamente. Seus filhos já haviam saído de casa, mas estavam sempre presentes, dando todo o suporte necessário. E agora, ele tinha diariamente a companhia de sua fiel escudeira, Tequilinha, adotada pelo Alexandre propositalmente para ficar com ele quando seguisse também o seu próprio caminho.
Aos seus 79 anos, batalhando contra o câncer há dois. Mesmo com a pandemia, não podia parar a quimioterapia. Foi guerreiro do início ao fim, chegamos a acreditar que ele iria superar a covid-19 pela sua rápida resposta aos tratamentos. Mas seu corpo, já cansado, não aguentou o longo tempo de UTI. E, finalmente, descansou.
Manuel cumpriu sua jornada nessa vida. Veio de uma família linda e construiu sua própria, somos o seu legado. E seremos vitoriosos por você. Para sempre em nossos corações. Seus filhos queridos, Manu e Ale. Eduardo e Silvana, 'in memoriam'."
Manuel nasceu em Sobrado, Valongo (Portugal) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 79 anos, vítima do novo coronavírus.
Testemunho enviado pela filha de Manuel, Manuela da Silva Moreira Martins. Este tributo foi apurado por Hélida Matta , editado por Hélida Matta , revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 19 de setembro de 2020.