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Marcelo do Lago Pareja

1962 - 2020

Inconformado com as mazelas do mundo, queria transformar a realidade e sabia exatamente por onde começar.

Marcelo foi pastor de uma pequena igreja na cidade de Aral Moreira, Mato Grosso do Sul. Dedicou sua vida à recuperação de muitas pessoas, principalmente às marginalizadas pelo vício de drogas. Estava fazendo pós-graduação para se especializar nessa área social. Ele tinha pressa em mudar a realidade das pessoas e sabia exatamente por onde começar, mas não deu tempo. Marcelo faleceu no curso de um projeto que era seu sonho: abrir uma comunidade terapêutica gratuita que oferecesse dignidade a essas pessoas que perderam tudo em razão do vício.

Ele conheceu Rosiney, que todos chamam de Rosi, em Londrina, num barzinho perto da faculdade. Logo se apaixonaram, casaram-se em 1982 e permaneceram juntos por trinta e oito anos. Ele era um marido amoroso e cuidadoso: escrevia cartas, deixava bilhetes. Extremamente romântico!

Tiveram três filhos: Eloine, Marcelo e Gabriela. Na infância deles, era Marcelo quem participava das reuniões escolares e olhava seus cadernos toda semana. Nunca lhes deixou faltar nada e vivia atento a todos os detalhes. Ele se preocupava com a educação e acreditava que ela era a chave para um futuro melhor. Como pai amoroso, mesmo com os filhos crescidos e tendo suas próprias famílias, enviava diariamente áudios para saber como estavam.

Depois vieram os netos — Heitor, Arthur, Daniel e Felipe — para quem o avô era uma grande referência. Marcelo gostava de acompanhar o desenvolvimento do seu quarteto favorito e diariamente pedia que lhes enviassem fotos para que pudesse fazer isso. Ele dava ovos de Páscoa para os filhos mesmo depois de adultos e brincava com os netos até de soltar pipa.

As crianças sentem muito a falta de Marcelo e expressam isso de diferentes formas: Arthur faz desenhos do avô no Céu. Felipe pede para ver suas fotos com ele e, na sua preferida, segura um pacote enorme de macarrão instantâneo que os avós trouxeram na última viagem. Volta e meia, diz que quer reencontrar o avô quando for para o Céu e vive perguntando se Marcelo pode vê-lo de lá.

Daniel é protagonista de divertidos vídeos que fazem a família imaginar o quanto Marcelo gargalharia da espontaneidade do neto. Heitor, que era o seu xodó, continua o maior craque. No último jogo, perguntaram para quem ele ofereceria os gols feitos na partida. Sem pestanejar, ele disse: 'Para o meu avô'! E quando foi perguntado se o avô estava ali, sem graça, Daniel fez um não com a cabeça e apontou para o céu.

A filha Eloine recorda lembranças da infância: "Quando criança, ganhei uma estrelinha em uma pizzaria. Então, enquanto ele pagava a conta, fiz um coração em seu carro novo com a bendita estrelinha de ferro... Certa vez, estávamos viajando para a casa da minha avó e o carro quebrou. Passamos o Natal em um ônibus tomando refrigerante (quente!) de laranja e gargalhando das piadas dele. Foi um imprevisto que gerou uma memória maravilhosa! Ele tinha uma risada muito contagiante"!

Ela recorda também que semanalmente a família se reunia para fazer churrascos que, às vezes, incluíam os amigos e que, nessas ocasiões, ele colocava vinho em uma taça enquanto os adultos conversavam e observavam as crianças brincando.

Profissionalmente, Marcelo fez de tudo na vida. Foi mestre de obras, desenhista, dono de restaurante e de uma fábrica de móveis, além de representante comercial. Por último, tornou-se corretor e pastor. Cursou Teologia e seguiu até o fim de sua vida como pastor de uma Igreja Batista. Levava a sério sua missão, ajudando a todos — sem distinção. Dava palestras, escrevia livros, chegou a publicar um. Sentia-se realizado e dizia sempre que era o cumprimento de um chamado; de fato, ali ele se encontrou.

Tinha paixão por futebol. São-paulino roxo, passou o amor pelo Tricolor Paulista aos seus descendentes. Nas horas livres, gostava de ler e escrever. Antes de seu falecimento, estava escrevendo dois livros, sendo um de memórias da família desde a sua bisavó. Ele se interessava bastante pelas histórias de vida dos seus antepassados. Também gostava de doces — tinha paixão por jujubas — e apreciava um churrasco: "um ‘dom’ que legou ao meu irmão”, conta Eloine.

Marcelo era culto e inteligente. Com uma memória que era sua marca registrada, sabia sobre qualquer coisa que lhe perguntassem: datas exatas de fatos históricos do Brasil e do mundo, das fases dos reinados, por exemplo. Tinha o dom de ensinar e quando falava, com aquela voz alta e imponente, todos olhavam cativos, inundados pela paixão das histórias que contava. A família o considerava uma enciclopédia ambulante. Durante as conversas, citava filósofos, pois, além de saber sobre o assunto, ainda citava a fonte.

Ele gostava muito de música e a preferida era "Aquarela", de Toquinho e Maurizio Fabrizio, que ele ouvia com frequência no toca-fitas do carro quando os filhos eram pequenos. “Entretanto, ele me ensinou a amar Pink Floyd e toda vez que ouço "How I wish you were here", eu me derramo em lágrimas, porque um dos trechos traduzidos da canção diz muito sobre o sentimento de toda a família”, diz Eloine:

"Como eu queria que você estivesse aqui
Nós somos apenas duas almas perdidas
Nadando em um aquário ano após ano
Correndo sobre o mesmo velho chão
O que nós descobrimos?
Os mesmos velhos medos
Queria que você estivesse aqui"

Eloine fala sobre Marcelo com grande admiração: “Meu pai era um sonhador. Otimista. A vida batia e ele sempre se levantava. Era um esposo incrível, pai amoroso e avô que não media esforços pela felicidade de seus netos. Deixou crônicas escritas, programas de rádio e vídeos gravados, sempre com uma mensagem de esperança. Acredito que ele já não cabia mais nesse mundo! Viveu intensamente cada segundo de sua vida, fazendo tudo o que tinha vontade. Fracassou inúmeras vezes, mas nunca desistiu de recomeçar. Nunca reclamava de nada. Preocupava-se demais com tudo e com todos”.

“Seu grande sonho era que nossa família fosse plena e feliz. Pleiteava também a ideia de terminar a vida morando em um sítio, pois tinha fascínio por ambientes bucólicos e se via escrevendo tendo por companhia o cantar dos pássaros e o barulho das árvores.”

Eloine fala também de outro desejo que o pai alimentava: “Criar uma comunidade terapêutica era o seu grande sonho. Escreveu um livro chamado "Avião de Seis Lugares", onde relata a restauração de vida do personagem. Ele nunca teve problema com drogas, mas como pastor de uma cidade de fronteira, lidava com muitos casos. Por isso, tinha muito orgulho de ser instrumento para restauração dessas pessoas. Tivemos inúmeros testemunhos nesse sentido em seu funeral. Ele literalmente alocava os dependentes em casa quando era difícil encaminhar para um centro de recuperação, já que não há muitos na região".

"Certa vez, um dependente até nos furtou, mas ele não se arrependia e continuava os ajudando. Seu objetivo era abrir a comunidade para a facilitação desse trabalho e mantê-lo gratuito, porque a maior parte das famílias não possui recursos para a internação. Para se aperfeiçoar no assunto, estava inclusive realizando especialização em Políticas Públicas.”

Ao partir, Marcelo deixou um legado importante a todos da cidade que ainda sentem a sua ausência.

“Meu pai me falava sempre que 'ser é melhor que ter'. Certa vez, fiquei com vergonha por ele me levar de fusca para escola. Ele acabou percebendo, riu e me disse essa frase. Volta e meia, quando precisava, ele a repetia. Antes de partir ele nos deixou diversas mensagens e em todas elas nos pedia coragem”, finaliza Eloine.

Marcelo nasceu em Peabiru (PR) e faleceu em Ponta Porã (MS), aos 58 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Marcelo, Eloine Pilegi Pareja. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 27 de outubro de 2022.