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Maria Estela Araújo da Silva

1942 - 2020

Agricultora, amazonense, avó, alegre, amada: adjetivos que começam com a letra “a”, de amor, definem Piteca.

Nasceu na vila de Nogueira, no coração da Amazônia, a cerca de 500 km de Manaus, às margens do lago Tefé, formado pelo alargamento do rio de mesmo nome, um dos afluentes do rio Solimões.

Descendente de indígenas, trabalhou grande parte de sua vida na agricultura, plantando mandioca, produzindo e vendendo farinha para o sustento da família. Um trabalho árduo, fisicamente cansativo, mas importante. Houve momentos em que, já casada com Enéas Quirino, que na época era um jovem professor, ela mantinha a casa com dignidade enquanto o marido aguardava aflito a entrada do salário, que com frequência atrasava.

Em 1985, no entanto, deixou as plantações e se mudou para a zona urbana de Tefé, cidade próxima que exerce forte influência econômica na região, um dos municípios mais antigos do estado do Amazonas. Pois queria que os 11filhos - Gilmar, Maria Neide, Júlio Jorge, José Nagibe, Hugueth, Maria Lúcia, José Roberto, Maria Eneida, Elane Cristina, Fábio Anderson e Cíntia - pudessem estudar e ter uma vida diferente daquela que ela teve. Na cidade, trabalhou como zeladora e depois se aposentou.

Era chamada carinhosamente de Piteca. Foi uma mulher guerreira, mãe dedicada, esposa leal de um casamento que firmou laços por 55 anos. Pela necessidade de trabalhar fora de casa a maior parte do tempo, incluiu os filhos mais velhos na criação e nos cuidados com os mais novos. Ensinou união. Amorosa, porém severa, corrigia. “Batia com um cipozinho na perna de quem precisasse de correção, mas sem machucar, para o bem”, conta a filha Elane.

Conectada com a natureza, não gostava de desperdício e tinha o hábito de lavar os utensílios recicláveis para reutilizá-los. Os filhos zombavam, mas acabavam usando os recicláveis para levar para casa um pouco das comidinhas gostosas que a mãe preparava, como as carnes de vários tipos e um delicioso caldinho de peixe salmourado que ela fazia como ninguém.

Muito ativa, era ministra da igreja São José, que frequentava assiduamente. Levava a hóstia até a casa das pessoas acamadas. O marido brincava dizendo que Piteca rezava mais do que o padre. E ela não perdia por nada os encontros com o grupo de idosos e idosas do qual participava.

Os passeios? Não recusava nenhum convite, ao contrário, estava sempre pronta para ir com os filhos e filhas às pescarias, aos piqueniques e aos banhos de água doce na beira dos igarapés e nas praias do lago de Tefé. E sempre voltava para a “Nogueira da Vovó”, como diziam os sobrinhos, para visitar a terra natal.

Deixou um legado de união não só para os filhos mas também para os 38 netos. Queria sempre todo mundo junto, gostava de ver a casa cheia de vida, envolta pela algazarra de alegria que era fruto do amor que irradiou.

Maria nasceu Tefé (AM) e faleceu Tefé (AM), aos 77 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Maria, Elane Cristina Araújo da Silva. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Bettina Turner, revisado por Otacílio Nunes e moderado por Rayane Urani em 3 de outubro de 2020.