1936 - 2020
Mãe, avó, mulher, amiga... Uma pessoa que estava sempre com o sorriso no rosto. Levava a vida como um presente.
Esta é uma carta aberta de Renata Gualberto para a sua mãe, Maria Helena:
Quem conheceu minha mãe, mesmo que por algum tempo, está invariavelmente triste.
Ela era uma pessoa cativante, cheia de energia, cheia de opiniões, inteligente, culta e muito elegante, na sua simplicidade.
Era minha grande amiga, na melhor concepção da palavra.
Estava lá, à disposição, a qualquer momento. Trabalhávamos juntas, diariamente. Chegando em casa, ela ainda ligava para perguntar quanto ia de farinha na panqueca, onde era a loja de brinquedo ou qual o parentesco com determinada pessoa.
Sempre tinha as respostas na ponta da língua, respondendo com disposição e curiosidade. Seu humor era afiado, e nunca reclamou de uma brincadeira, por mais provocativa que fosse.
Quando ligava era para saber das crianças, para combinar um final de semana ou, simplesmente, para matar saudade. Aparecia em casa com alguma frequência, muito menos do que eu gostaria, mas eu ia muito à casa dela. Assim como eu, ela gostava de novidades. Preferia muito mais um restaurante que nunca havia ido a um bom, já conhecido.
Foi a mesma pessoa, nos quase 58 anos em que convivemos.
Não conheço uma pessoa que não gostasse dela, mesmo sendo alguém com opiniões polêmicas, muito conservadora e com pouca disposição em se esforçar para agradar. Até na internet ela brilhava: com mais de 80 anos, parece que gostava de um bom arranca-rabo digital, deixando claro que não deixaria de falar o que pensava.
Pintar era sua grande paixão, e fazia isso desde que me entendo por gente. Dava aulas de pintura para um grupo de mulheres, algumas delas há várias décadas e que, com o passar do tempo, tornaram-se praticamente da família. Defendia suas amigas e sua família com todas as forças.
Outra paixão era a pescaria, desde pegar umas tilápias, com varinha de bambu, no sítio; até tucunarés e cavalas, no Amazonas. Era linda sua excitação antes, durante e mesmo depois de uma viagem dessas.
Sua morte veio rápida, inesperada e talvez ainda nem entendida. Pegou o vírus enquanto fazia a quarentena. Numa sexta-feira, sentiu-se enjoada, o mal-estar piorou no domingo, internou na segunda e já estava em respiração mecânica na terça à noite. Foi, talvez, o dia mais triste que passei. Ao descer para UTI, sabendo que seria intubada, perguntou para mim, como se já soubesse a resposta, se iria morrer. Eu disse que não, apresentei o Roberto, o intensivista que ficaria com ela, e ela colocou novamente a máscara de oxigênio, aguardando a sedação. O pulmão foi sendo rapidamente consumido nos dias seguintes, assim como o rim, até que deixou de responder às drogas, que tentavam manter a pressão arterial, na quinta-feira à tarde.
Tento me confortar imaginando que sua morte não tenha sido num momento ruim. Ela teve uma vida plena, conheceu o mundo, fez tudo o que se propôs a fazer e criou uma família única e muito unida. Aos 83 anos, estava prestes a sentir as limitações da idade. Ainda tinha muitos planos e projetos, mantinha atenção constante nos três filhos, curtia todos os netos, e cuidava com carinho de seus dois refúgios: o sítio em Porto Feliz e a casa da praia, em São Sebastião, onde ia, religiosamente, semana sim, semana não. Morreu numa época de grandes preocupações e incertezas, mas estava, sem dúvida alguma, feliz.
Estou convencida também de que nunca deixei de falar nada para ela. Eu me abria totalmente quando a conversa era séria, brigávamos, mas nunca sobrou um resquício de rancor sequer. Ela sabia perfeitamente o quanto eu a amava e a recíproca era verdadeira.
Meu pai, que jamais imaginou que poderia morrer depois dela, tem um bom desafio pela frente. Tinham acabado de fazer 60 anos de casados e a dependência sempre foi enorme. Será duro.
Não tenho religião ou crenças. O que sobra de alguém que morre, no meu modo de ver a vida, são suas obras e, principalmente, as boas memórias.
Peço então, para quem conheceu Maria Helena, que não a esqueça jamais! Lembrem-se daquela pessoa única, maravilhosa, insubstituível, que ensinou tantos a viverem bem e felizes. Ela gostava de gente, gostava de saber que as pessoas gostavam dela e gostava de estar com gente. Meus filhos referem-se à vovó Lelê com o carinho de sempre, como se ela estivesse ainda por aí.
Estou tentando aprender com eles.
Maria nasceu em São Paulo e faleceu em São Paulo, aos 83 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Maria, Renata Gualberto. Este texto foi apurado e escrito por Renata Gualberto, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 4 de julho de 2020.