1936 - 2020
Seus frutos se lembram muito bem das mãos – e dos gestos – que a tornarão eterna. O bom plantio é implacável.
Uma única palavra talvez não seja capaz de resumir a figura que dona Maria representava. Mas, com certeza a que mais se aproxima de quem foi a senhora de jeito turrão, mas de coração mole e aconchegante, é “abrigo”.
Mãe de oito filhos, ainda acolheu em seus braços outros cinco sobrinhos que, carinhosamente, também a viam como figura materna. Para completar, ainda teve 14 netos e três bisnetos. Ela fazia questão de ostentar, com muita felicidade, sua enorme e unida família.
A vida construída ao lado de seu marido, Raimundo, foi adubada desde o começo. O homem, que trabalhou por anos na Secretaria de Fazenda, costumava dizer que andava exatamente duas léguas para sair de Tianguá, a pé, e visitar a amada em Viçosa do Ceará. Hoje, esse percurso dá em média singelas três horas de viagem sob o tempo da região serrana cearense.
Ambos nascidos em 1936, casaram-se aos 18 e, em 1955, mudaram-se para a capital do estado. Mais especificamente para a Vila Manoel Sátiro, na periferia de Fortaleza. E foi lá, inclusive, que fincaram raízes.
Maria era conhecida por muitos como “Maria da costura”, porque pegava encomendas dos vizinhos. Todos os anos, religiosamente, pois era muito católica, mobilizava a comunidade para angariar mantimentos e cestas básicas que seriam doadas aos garis que limpavam as ruas do bairro no Natal. Virou tradição.
Os domingos em sua casa eram deliciosos. Ela preparava, com todo carinho, a famosa galinha caipira, temperada com um ingrediente que não podia faltar de jeito maneira: pimenta-do-reino. Gostava de comida apimentada e reclamava quando não podia preparar as próprias refeições. Os filhos e netos, que moram bem próximos à casa da matriarca, agradeciam. Afinal, o prato tinha gosto de afeto.
Quando Raimundo morreu, em 2005, a senhora sentiu o baque da perda. Mas, apoiou-se no que havia construído ao lado do marido e fazia questão de reafirmar sempre que podia. “Eu quero que vocês continuem o legado deixado por mim e por seu pai”, dizia. Ela repetiu a frase quando precisou fazer uma cirurgia de risco no coração, em 2019. Mas, retornou para o seu bairro e fez a festa. “Voltou querendo ser melhor do que já era, por incrível que pareça”, lembra sua filha caçula, Socorro.
Em sua última conversa com a mãe, por videochamada, teve mais uma amostra do que foi dona Maria José, que disparou reclamações da quarentena. Perguntada se estava bem, resmungou: "Tô não, como posso estar boa se não posso nem ir ali fora? Como que é não poder sair de casa?”. Mas, se emocionou logo em seguida e exprimiu a vontade de que tudo passasse logo.
Seu alento, tanto agora quanto em toda a vida, era o quintal da casa. Lá, plantava de tudo. Pimentão, jerimum, caju, graviola. Preparar a terra, adubar, plantar, cuidar e colher foi que ela mais fez bem na vida.
Hoje, os frutos se lembram muito bem das mãos — e dos gestos — que a tornarão eterna. O bom plantio é implacável.
Maria nasceu em Viçosa (CE) e faleceu em Fortaleza (CE), aos 84 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Maria, Maria do Socorro Vieira da Costa. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Lucas Eduardo Soares, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 17 de agosto de 2020.