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Maria Lúcia de Aguiar Pinheiro

1956 - 2020

Um sorriso solar habitualmente lhe estampava o rosto.

Se ela fosse representada por uma música, certamente seria "Maria Maria", de Milton Nascimento e Fernando Brant. Como milhões de Marias pelo Brasil, era dotada de uma força e de uma estranha mania de ter fé na vida: em meio aos percalços que o destino lhe impôs, nada lhe fazia esmorecer.

Evangélica e dotada de uma fé inabalável, amava a Deus sobre todas as coisas, emanando uma paz indescritível a quem teve a sorte de com ela conviver. Sempre dizia que não queria passar dos 70 anos e que na hora certa encontraria Jesus; e toda essa força espiritual foi de suma importância quando a mãe, que era sua base de sustentação, faleceu em seus braços.

Amava plantas, principalmente orquídeas, e nas horas vagas gostava de assistir a filmes e viajar. Além disso, Maria era dona de si, não gostava de depender financeiramente de ninguém, nem de ser cuidada, e por isso era trabalhadora, muito correta, e também orgulhosa.

Durante um assalto, seu noivo, grande amor de sua vida, foi assassinado. Depois disso, preferiu seguir só. Não teve filhos, mas com tanto amor que não cabia em seu peito, a vida lhe surpreenderia. Seu primeiro emprego foi na antiga empresa de telefonia, Telecomunicações do Rio de Janeiro, mas logo depois se tornou babá, descobrindo assim que seu dom era cuidar de pessoas.

No seu primeiro trabalho como babá, teve uma identificação imediata com Joanna, cuidando de seus primeiros meses de vida até parte da infância da menina. A partir daí, as duas desenvolveram uma relação de mãe e filha que se estendeu por toda a vida. A ligação entre as duas era tão forte que quando pequena, Joanna não queria que ela saísse de sua casa nos finais de semana. "Quando criança, eu telefonava para a mãe da Maria dizendo que estava tendo pressentimentos. Preocupada, ela pedia à Maria para que ficasse na minha casa porque eu estava "sentindo coisas". Então, Maria acabava ficando. Nas vezes em que ela não ficava, eu gritava tanto da janela que o porteiro achava que eu passaria mal. Maria precisava me deixar dormindo para conseguir ir embora", recorda Joanna.

Como um reencontro de almas, devotavam amor uma pela outra e inclusive se assemelhavam muito fisicamente, sendo constantemente perguntadas se eram mãe e filha. As duas se falavam o tempo todo, todos os dias, e sempre que possível, Joanna guardava um dinheirinho para realizarem juntas algum passeio. "Nossa última viagem foi para Mangaratiba. Foi maravilhoso, pois, nessa ocasião, andamos de lancha. Nossos passeios não tinham muito luxo, mas ao lado de Maria, os momentos eram repletos da mais pura felicidade", conta Joanna.

Em seu aniversário, Joanna pediu a Maria que lhe escrevesse uma carta, que acabou se tornando uma despedida entre as duas. Cada parágrafo traz à tona algo especial, porém, Joanna guarda um trecho como um afago à alma e tendo a certeza do reencontro entre as duas, e enquanto isso, os dias são de muita saudade. “Nunca deixe de acreditar que tudo vai ficar bem, porque vai ficar de verdade”, dizia o trecho da carta.

Durante a vida, cuidou de muitas outras crianças, sendo muito querida pelas famílias com quem trabalhou. Extremamente devotada ao que fazia e muito amorosa com os pequenos, sempre foi muito requisitada em sua função. Graças a sua profissão, teve inclusive a oportunidade de conhecer o sul da França, região que ela amava e para onde sonhava um dia voltar.

Maria certamente foi uma pessoa singular e hoje faz morada nos diversos corações que cativou com sua doçura. "Ela foi a pessoa mais valiosa da minha vida! A maior parte de tudo que sou veio dela", recorda Joanna, que foi muito cuidada por Maria.

Maria nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 64 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha do coração de Maria, Joanna Valente. Este tributo foi apurado por Andressa Vieira, editado por Aléxia Caroline, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 18 de outubro de 2021.