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Maria Victória Afonso

1941 - 2020

As mãos calejadas da lida na roça tinham também a delicadeza expressa nos pontos caprichosos dos bordados.

Victória foi ainda criança para Petrolina de Goiás com os pais, para produzir rapadura, melado e moça branca, além de plantar fumo na fazenda da família. Cresceu com os irmãos Francisco, Venerando, Manuela, Manuelina, Elza e Divina.

Por lá ela não teve a oportunidade de estudar, já que morou e trabalhou na fazenda até a adolescência. Aos 17 anos casou-se com Altino, por meio de um arranjo feito pelo pai. Foi um casamento difícil, de submissão e violência doméstica. Juntos tiveram cinco filhos: Maria Lúcia, Valdevino, Maria Aparecida, Valmira e Dimilson.

Todos viveram juntos em Petrolina durante a infância. “A gente tomava banho e ela enfileirava os filhos pra pentear o cabelo de cada criança. Depois disso, ela dava arroz doce quentinho, no prato esmaltado, como lanchinho da tarde para cada um de nós.”, conta a filha.

Cida também se lembra dos eventos que frequentava com a mãe: “A gente passava a noite toda num lombo de cavalo, indo de uma fazenda a outra para rezar o terço nas casas que faziam as Festas de Reis.

Todo fim de semana a mãe fazia comida caipira para receber os filhos que ainda adolescentes partiram para estudar na cidade; frango com quiabo e angu nunca faltavam!

Victória acabou por se separar de Altino e voltou a morar com o pai. A vivência na roça deu a ela experiência em quase tudo: ela sabia consertar ou fazer qualquer coisa em casa e na fazenda. Nunca teve preguiça.

Quando o pai dela faleceu em seus braços, Victória continuou na fazenda por um tempo e logo se mudou para Goiânia ficando assim perto dos filhos. Nesse tempo a vida ficou mais leve. Ela não deixou de cuidar da casa e gostava de passar o tempo fazendo biscoitos, bolos, quitandas, além de doces de mamão e figo. Nas festas ela sempre preparava o frango e o pernil recheado; e para animar, gostava de ouvir modas de viola.

Evitando ficar somente em casa, se cadastrou na Fundação dos Idosos para aprender a escrever e fazer hidroginástica. Passou a participar do grupo de fiadeiras e tecelãs. Bordava ponto cruz, fazia o bordado com fitas e fiava colchas assim como panos de prato.

Também tinha muitas amigas no condomínio em que morava. Se alguém passasse mal, ela já saía falando com as pessoas a fim de buscar ajuda. A amiga Geni se lembra: “Ela vinha na minha casa e sentava no sofá para conversar, de repente dormia, ali mesmo por horas... eu nem fazia barulho”.

Victória era muito católica, devolvia o dízimo sem falhar. Não perdia nenhuma Romaria do Divino Pai Eterno, ao qual foi devota. Fazia questão de alugar uma casa todo mês de junho, para reunir a família na Festa do Divino Pai Eterno. Quando jovem ia de carro de boi para essa festa que durava dez dias e nove novenas.

Apesar dos traumas sempre deu o seu jeitinho para driblar a tristeza, em todas as fotos está gargalhando com a família. Victória era uma avó muito querida, que ajudou na criação dos netos, todos eles amavam estar próximos a ela.

O neto Caio a homenageia:

Vovó Victória

E agora quem vai falar "TIRA ESSE PÉ DO CHÃO MENINO, E IN VAI CARÇA UMA CHINELA"?
E agora quem vai confundir o nome de todos os netos?
E agora quem vai falar: ESSES MÉDICOS DE HOJE EM DIA NÃO SABEM DE NADA!"
E agora quem vai me mandar ralar o queijo pra gente fazer um biscoito que só a senhora fazia!?
E agora com quem eu vou fofocar e contar as proezas da nossa família?
E agora quem vai me mandar lavar os pés toda hora porque tá cheio de "Macuco"?
E agora quem vai falar "PIA LÁ SO QUE VESTIDO MAIS BUNITO DA MUIÉ NA TV"
E agora quem vai falar " Ó CAIO EU VOU FRITAR UMAS PAMONHA PRA NOIS MAS CÊ NUM CONTA PRA SUA MÃE NÃO"!?
E agora quem vai contar as "Histórias da Roça"?
E agora quem vai falar "IN LÊ PRA VÓ LÁ PORQUE A VÓ NÃO SABE LER NÃO"!
E agora vou acordar e quem vai dizer "BOTA CAFÉ PRO CÊ AI MEU FI QUE AGORINHA VOU ASSAR AS BOLACHA PRA NOIS"!?
E agora quem vai ser a primeira da família a ir pra Trindade todo ano?
E agora quem vai falar " ÓIA PIA LÁ SÓ MAIS QUE PLANTINHA MAIS BUNITA, PEGA UMA MUDA LÁ PRA VÓ"!?
E agora quem vai falar "UAI TIRA ESSE CACHORRO DAQUI DE INDENTRO DE CASA, A VÓ GOSTA DE CACHORRO SÓ DO LADO DE FORA"!
E agora quem vai falar " ESSAS MUIÉ AQUI DO PRÉDIO FAIZ BARUI DEMAIS, QUANDO É NOIS ELAS FICA PARECENDO UM BOI BRABO"!
E agora quem vai falar "UCÊ CAIO E O VÍTO SÃO OS NETO PREFIRIDO DA VÓ, UZOTRO NÃO DA CARIN QUE NEM UCÊIS"! (Dizeres da vovó)
E agora quem vai falar "QUEM É ESSA AI NO CILULAR, PIA QUE MUIE BUNITA ERREM"!
E agora quem vai falar "IXII AGORA NOIS TA FUNDIDO MESMO"!
E agora quem vai dormir na cadeira todo dia?
E agora quem vai falar "ESSE POVO DE HOJE TA É MUITO FRESCO, NA MINHA ÉPOCA NÃO ERA ASSIM NÃO"!?

A senhora me ensinou tudo o que é preciso para aproveitar essa vida, com sua humildade e bondade formou os cinco filhos que provaram para o mundo que o amor é a solução. Nunca tive vergonha de expressar esse seu jeito humilde de ser, esse jeito que você me ensinou e nunca terei. Como já dizia Milionário e Zé Rico - que a senhora amava: "A vida judia, mas também ensina".

Eu sei que Deus te levou para um lugar melhor como um anjo, junto com o Tio Vino. Vocês sempre serão eternamente lembrados por mim e por nossa família. Vou te amar para sempre Vovó Vitória.

Maria nasceu em Formiga (MG) e faleceu em Goiânia (GO), aos 79 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha e pelo neto de Maria, Maria Aparecida Afonso Stival e Caio Drummond Afonso Stival. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Rayane Urani, revisado por Magaly Alves da Silva Martins e moderado por Rayane Urani em 27 de outubro de 2021.