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Marinita dos Santos Albuquerque

1957 - 2020

Seu maior ensinamento foi que é possível passar por tudo de cabeça erguida e de batom vermelho.

Marinita era dona de uma alegria contagiante e de riso fácil, a todo momento estava rodeada de pessoas queridas. “As vizinhas saíam de suas residências para se sentarem na calçada, na frente da casa de mainha para ficar conversando. A gente dizia que a frente da casa dela era a praça da rua. Todo mundo ia pra lá.”, conta sua filha Rafaela.

Os finais de semana eram dedicados às canções, a casa se enchia de notas musicais alegres e convidativas; até as visitas acabavam “entrando no clima”. “Ela adorava ouvir música, chegava final de semana e ela colocava bem alto o som de Zezo e a rua inteira acordava logo cedo.” Sua alegria de viver alcançava os demais e não tinha quem não gostasse dela.

Só saía de casa se estivesse com o batonzinho vermelho, com o cabelo bem-arrumado e com as unhas, que chamavam muita atenção, pintadas. Seu sorriso marcante iluminava seu rosto, especialmente, quando o assunto era os quatro netos, Mariana, Ranieli, Marcos Daniel e Pedro, seu xodó.

Muito se engana quem pensa que por trás daquele batom vermelho e das unhas sempre bem-cuidadas havia uma pessoa frágil. Marinita possuía uma força admirável, mesmo que, às vezes, não demonstrasse ter ciência de todo esse poder. Seus filhos Rogério, Rogéria e Rafaela e sua afilhada Ana Paula sempre foram a razão dessa garra. E ela era o alicerce para sua família. Passou por poucas e boas, mas seus entes estiveram presentes em cada momento para estimulá-la.

Apesar dos pesares, “ela mantinha o alto-astral lá em cima”, nada conseguia derrotá-la, nem mesmo as frequentes e exaustivas sessões de hemodiálise – devido à insuficiência renal que vinha tratando. Quando o mundo parecia desmoronar, essa família sustentava, de mãos dadas, o peso que viesse. Todas as dificuldades que enfrentou só mostraram à Marinita – e a quem quer que fosse –, o tamanho de sua valentia. E essa foi a maior lição que pôde deixar aos filhos.

Pernambucana arretada, Marinita amava cozinhar para os filhos, netos e irmãos. Fazia questão de reunir todo mundo aos finais de semana em sua casa. Dava para sentir de longe o afeto em seus pratos. Os doces, especialmente os de banana, eram os favoritos de Rafaela, mas é difícil escolher apenas um prato dentre tantas delícias.

“Ela cozinhava muito bem, amava fazer buchada e dobradinha. Por causa da doença, não podia comer, mas comia do mesmo jeito. Eu falava ‘Mainha, tu 'pode' comer isso?’ E ela: ‘Não posso, mas eu como.’ Dava trabalho.”, lembra com alegria. Mas se havia uma coisa que ela detestava era comida de hospital. Para alguém que cozinhava tão bem, essa era a pior penalidade possível.

“Sempre dávamos um jeito de driblar os seguranças do hospital e conseguíamos entrar com comida escondida para ela em outros momentos. A gente pegava os potinhos em que vinham as refeições e trazíamos pra casa. No dia seguinte, levávamos de volta com comida caseira e, na hora da refeição, trocávamos os pratos para, assim, ela conseguir comer bem. Esse era o seu remédio. A presença dos filhos e a comidinha caseira.”, relata Rafaela.

Em outras circunstâncias, na hora da visita, o quarto de Marinita reuniria todos os filhos de uma só vez. Mesmo não tendo tido a oportunidade de segurar nas mãos de cada um deles por mais um minuto e dizer-lhes as últimas palavras, seu maior ensinamento viverá em cada um deles. A alegria de viver e a coragem para nunca desistir e nunca se entregar serão para sempre o combustível para eles seguirem adiante. Ela nunca estará sozinha, tampouco será esquecida, pois continuará a existir na memória de cada membro de seu bem mais precioso: sua família.

Marinita nasceu em Rio Formoso (PE) e faleceu em Recife (PE), aos 63 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Marinita, Rafaela dos Santos Albuquerque Magalhães. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Marina Teixeira Marques, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 6 de novembro de 2020.