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Mário Alberto Gomes dos Santos

1950 - 2020

Salvou muitas vidas aplicando o que aprendeu no convívio da floresta; foi um médico de homens e de almas.

"Ele era uma pessoa formidável!", conta o amigo Fernando Sérgio. "Era como um médico e fisioterapeuta dos pobres que, dominando a cultura popular das raízes, tratava das dores que o SUS não alcançava ou que a própria medicina química e mercadológica não via. Como fisioterapeuta, colocava os ossos e nervos no lugar. Ainda que não tivesse passado por nenhuma instrução formal, conhecia o corpo com a singularidade de um mestre".

Seu Mário, como era conhecido, era filho de Maria Gomes dos Santos e nascido em Manaus. Sua história de vida, contada por ele em seus bons papos, era cheia de aprendizagem, de obstinação e de muita certeza de que, aqui na Terra, somos uns pelos outros. Sua sabedoria era ancestral e muito dela foi adquirida de seu avô, de quem ele sempre se lembrava e que viveu por muito tempo nas brenhas da selva amazônica, onde nada chegava além da exploração dos "senhores da borracha".

Entre suas recordações, estava uma de certa vez o avô ter socorrido um ribeirinho que chegara com uma estaca fincada, de atravessado, desde a sola até o peito do pé. O ancião, mesmo com toda a sua sabedoria, achou que aquele trabalho não seria para ele. Por outro lado, ponderou que o recurso médico mais próximo estava a 12 horas firmes a remo e o acidentado não aguentaria vivo esse percurso.

Assim sendo, o avô de Seu Mário concluiu: “tem que ser eu mesmo”... e foi dando ao ferido, aos poucos, um chá de Canabis e foi conversando com ele para manter sua consciência e saber o ponto exato de intervir. Tratou assim do paciente durante toda a manhã e quando chegou a hora do almoço, meio sedado, o homem dormiu. Foi então que, com um golpe de mestre e o auxílio de uma torquês, o avô arrancou a estaca, fez a curetagem e, ao final da tarde, o ribeirinho já aguentou montar em sua canoa e remar até sua casa — uma verdadeira façanha!

A saga do avô de Seu Mário não parou por aí. Ele tentou, de todo modo, livrar-se de uma dívida com um senhor da borracha, mas, por mais que ele aumentasse a produção, sua dívida só aumentava. Sendo assim, não teve alternativa a não ser planejar uma fuga.

A situação não era fácil, pois ele conhecia a vala comum que abrigava a todos que anteriormente haviam tentado e foram todos executados. Para piorar, a fuga não poderia ser só dele, mas também da mulher e dos filhos, e ele se juntou a outro colono na empreitada. Para isso, por meses passou a cultivar um roçado mais longínquo, para despistar a questão do tempo de ausência, calculando que precisava de algumas horas de vantagem na fuga, uma vez que iria a remo, ao passo que os jagunços teriam motor de proa em seu encalço.

Preparado o álibi, à surdina, as duas famílias se organizaram e embarcaram na hora prevista. A partir daí, o remo era a salvação de todos e teriam que ser firmes, fortes e habilidosos. Cada ponto que deveriam passar era cuidadosamente cronometrado ao modo dos ribeirinhos, pois sabiam que, nessas 12 horas de vantagem, nenhum erro de navegação poderia acontecer.

O plano deles consistia em chegar até o Rio Solimões, porque, uma vez lá, seria difícil para os jagunços os localizarem. Mas, até lá, deveria ser percorrido muito rio na imensidão da floresta, o que os tornava uma presa por demais fácil. Seu Mário contava que eles remaram sem parar um minuto. Quando estavam prestes a alcançar o Solimões, escutaram os motores às suas costas, mas conseguiram ainda ganhar o Solimões, com os jagunços já de arma em punho, a poucos metros, gritando para pararem.

Nesse momento, talvez por uma dessas providências da vida, surgiu uma embarcação da Marinha e os fugitivos tiveram a ideia de se chocar contra ela. O comandante, prevendo o desastre, gritou para que parassem ou seriam metralhados. Com isso lograram o objetivo que era chamar a atenção para esse drama que passava despercebido. Os jagunços também alcançaram a embarcação oficial e, esclarecidos os fatos, os algozes foram presos.

Para encurtar a história, seu avô foi liberto do cativeiro e o senhor da borracha, preso, ainda que por um período curto. Passados anos, no Governo Vargas, esse senhor da borracha teve falência total dos negócios em Manaus e, já no fim da vida, por ironia do destino, foi cuidado pelo avô de Seu Mário.

Foi dessa fonte que Seu Mário foi bebendo e se tornando uma pessoa formidável e que foi aprendendo a vida dura desde cedo. Quando adolescente, era ajudante de um padre, que se colocava ao lado dos pobres e trabalhadores. Então veio o golpe civil-militar de 1964 e o exército bateu na porta da igreja para inquirir o padre. O padre, no alto da torre, comendo os papéis e dando outros para o garoto Mário comer, dizia “come, Mário, o gosto pode ser ruim, mas salva vidas”, e assim conseguiram comer a papelada antes de descerem para abrir a porta.

O garoto Mário foi levado para o quartel e, depois de horas a fio sentado em um banquinho desconfortável, foi levado ao comandante, que queria saber tudo sobre o padre, quem eram os contribuintes da paróquia etc. Seu Mário, sem ter tido orientação, mas pelo instinto de sobrevivência e solidariedade de classe, foi dando os nomes de todos os burgueses que contribuíam com a paróquia. Não era isso que o comandante queria, ele desejava os “subversivos”, mas desses, seu Mário não falou um nome sequer, mesmo sob toda a pressão das baionetas. Esse fato já mostrava a pessoa generosa que seria Seu Mário adulto.

Posteriormente, Seu Mário conseguiu estudar e formou-se Técnico em Agronomia. Trabalhou em Roraima durante diversos governos, sempre pensando em fazer mais e melhor com o dinheiro público, de maneira a beneficiar os pobres.

Com essa lógica, conseguiu até um projeto para moradia popular, que executou sem rapinar qualquer quantia, nada em benefício próprio, era sua questão de honra. Com sua postura sempre parceira e de parente das comunidades indígenas, sem nunca falgar, esteve junto delas, ensinando o que é ser negro e aprendendo o que é ser índio. “Quando procurávamos seu Mário e não o encontrávamos, sabíamos que estava na reserva Raposa Serra do Sol, de onde trazia as ervas e argila de seus tratamentos milagrosos”, conta o amigo Fernando Sérgio.

Numa dessas idas à comunidade, diante da seca, ele se viu obrigado a beber água que sabia ser perigosa. Não deu outra! Pegou uma bactéria muito forte e foi internado no Hospital Geral de Roraima. Ele percebeu que estava definhando e morreria, pois os médicos não conseguiam neutralizar a bactéria. Então ele pensou: “Tenho que sair daqui e eu mesmo me tratar ou morro”.

Com esse autoprognóstico, evadiu-se do hospital, preparou suas ervas e iniciou um severo tratamento para combater a bactéria e usou o barro, para baixar a febre. Diz o amigo que ele contava essa façanha dizendo: “Fernando, quase morri, foi por pouco que dei conta dessa bactéria, ela é muito forte”.

E como essa, ele tinha muitas outras histórias para contar: como havia curado muitos jogadores de futebol e outras coisas que os médicos não resolviam e para as quais ele tinha apelado para sua sabedoria. Seu Mário, a seu modo, dava uma solução, não deixando nenhum necessitado sem acolhimento.

Fernando demonstra sua indignação com a morte de Seu Mário, contando: “Ele era a expressão daqueles poucos indivíduos que é muito sem notar sua grandeza. Esse homem extraordinário foi morto pelo coronavírus, pelo descaso, pelo esquecimento, assim como outros personagens incríveis, a exemplo da liderança indígena Aritana Yawalapiti, que falava dez línguas e o estado o deixou morrer de Covid-19”.

“A última vez que falei com Seu Mário, no início de 2020, pedi a ele que se cuidasse, que se isolasse, pois o vírus era muito forte e desconhecido e não podíamos perder o médico dos pobres. Ele me disse que estava se cuidando e havia saído de Boa Vista, em Roraima, e estava agora em uma terra sua, próximo à Boa Vista, ficando isolado. Não sei como foi contaminado, mas resistiu muito pouco no Hospital Geral de Roraima e faleceu."

"Perdemos uma pessoa generosa, de uma sabedoria popular incomensurável, dessas pessoas cuja ausência é um vácuo irreparável”, finaliza Fernando Sérgio.

Mário nasceu em Manaus (AM) e faleceu em Boa Vista (RR), aos 70 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo amigo de Mário, Fernando Sérgio Damasceno. Este tributo foi apurado por Lucas Cardoso e Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 15 de dezembro de 2023.