1950 - 2020
Para ele os bois e as vacas eram bichos de estimação.
Esta é uma homenagem de Simone ao seu pai, Natalino:
Sento Sé tem amanhecido diferente desde o dia em que meu pai adoeceu. Em um dia normal na vida de cada um de nós, fazia parte de nosso sentimento de habitualidade ver as portas do armazém abertas. Mas, desde então, elas estão fechadas.
Foram poucas as vezes que não vi painho, zeloso com seus hábitos, sair bem cedinho pela porta de casa para abrir as do seu armazém para o povo que ele tanto amava. Hoje, vendo aquelas grades abaixadas, me dou conta da enorme falta que ele faz!
Talvez poucos de vocês imaginem, já que Seu Natalino era homem de poucas palavras, mas a sua vida era o trabalho, e seu trabalho era a generosidade. Se poucas vezes vocês ouviam sua voz, é porque aqueles que fazem, pouco falam mesmo, e painho fez muito. Ele queria sempre ver a mesa farta, e nada nos faltou. Ele sempre quis ter sua família ao redor da mesa, e ela só fez crescer. Quis que seus filhos fossem alguém na vida, que estudassem, que soubessem o valor do trabalho, e nos fez o que somos! Ele tinha um jeito todo dele de amar as pessoas: e ele se doou completamente a isso.
Seu Natalino era um homem de um outro tempo. Viveu 70 anos e nasceu na velha Barra da Cruz, aquela que hoje deita sob as águas desse grande rio. Ele queria trabalhar e, como se dizia naqueles tempos, "fazer a vida".
Com dona Eva achou o amor. Tiveram oito filhos, uma casa e uma roça que amava de paixão! Todo santo domingo, lá ia ele ver suas terras, ver seu gado. Outro dia, Guilherme, o caseiro, disse que meu pai não tratava o gado como boi e vaca, mas como bicho de estimação. Para ele, todo mundo era bom. Todo mundo tinha algo bom. E era assim ─ desse tamanho ─ o coração desse homem que um dia parou de bater...
É difícil perder um pai, mais difícil ainda é perder painho. Toda vez que eu fecho os olhos ainda o vejo sentado no sofá, segurando o controle de sua TV nova, assistindo aos jogos do Flamengo. Quando éramos crianças, eu e meus irmãos torcíamos para que o time vencesse e assim pudéssemos aproveitar seu bom humor para lhe pedir alguma coisa. E como ele amava nos agradar! Desde os pães que ele trazia de Juazeiro, até a farofa que era a coisa mais gostosa desse mundo, tudo o que ele fazia era mais para aqueles que ele amava do que para si mesmo.
No fundo, no fundo, meu pai era um homem simples, mas de grande sensibilidade. Dentro daquele peito batia um coração enorme, de um homem duro que chorou ao telefone falando com os filhos no último Dia das Mães em que esteve conosco, que adorava mostrar para os amigos as roupas que os filhos lhe davam. Ele parecia um boyzinho, não era Tiago? Você não podia comprar um tênis de marca que ele dizia: “Eu também quero, meu filho!”. Até roupas coloridas ele usou! Meu pai tinha um coração puro, e cheio de amor.
E como ele amou! Se os oito filhos já não lhe bastavam, vieram os sobrinhos, os netos e a casa sempre cheia como ele a gostava de ver. Aos poucos, os filhos foram crescendo, assim como também estão crescendo os netos, e vão todos ganhando o mundo, levando um pouco de Seu Natalino junto de si.
Mas sabem... em todo esse tempo, uma presença se fez mais do que constante na vida de meu pai... a de minha mãe, Eva, sua eterna companheira! Um dia vocês atravessaram esse grande rio com duas crianças no colo, cheios de sonhos e esperanças, para aqui aportar e nunca mais sair. Neste chão, a vida foi fértil e vocês foram felizes, como só Deus pôde testemunhar. Agora vemos painho atravessar esse rio de volta rumo a eternidade, junto a este Deus que tudo viu e que está a nos esperar.
Minha mãe, eu sei a dor que você sente, não é fácil perder o amor de toda uma vida. Mas, também sei que sua fé é maior; que a senhora tem ao seu lado um Deus misericordioso, um Deus que utiliza da fragilidade para agir de forma poderosa. Deus será nosso alento, mãe. Ele usa da ferramenta do tempo pra acalmar tudo, e ir curando lentamente, porque Ele é o melhor remédio, tenha certeza disso.
Meus queridos irmãos, lembremos de nosso pai como o homem generoso, honesto, trabalhador, que ele sempre foi e que nos guiou até aqui. Todos nós um dia faremos essa mesma travessia, e nos reencontraremos todos; até lá, levemos nosso pai dentro de nós, dentro de cada coração imenso... que ele criou.
Natalino nasceu em Casa Nova (BA) e faleceu em Sento Sé (BA), aos 70 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Natalino, Simone Café Ribeiro dos Santos. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Ana Macarini e moderado por Rayane Urani em 14 de fevereiro de 2021.