Sobre o Inumeráveis

Nelson Borges Furtado

1960 - 2020

Infinito em suas histórias que merecem ser contadas.

Carta Aberta escrita pela filha Gabriella Furtado ao seu amado pai:

Meu pai é um dos números entre centenas de milhares que estão nos jornais todos os dias, mas ele não foi só isso. Por trás desse número existiu um ser humano grandioso, que teve uma vida de boas histórias e isso o torna um dos Inumeráveis com uma história que merece ser contada.

Com toda a certeza, se ele tivesse que falar sobre a própria vida, começaria com uma piada por ter nascido em Borrazópolis, no norte do Paraná. Ele amava zoar a própria cidade e também encontrar conterrâneos aleatoriamente.

Nunca tivemos a oportunidade de visitá-la juntos; mas, quando estive lá sozinha, já conhecia cada pedaço daquela terra pelas histórias que ele contava: o lago principal da cidade com a estátua da parteira polonesa que fez o parto dele e de todos os meus tios; a Igreja da Matriz; o Cristo Redentor (acredite se quiser); o açougue do meu avô e a vida pacata de uma cidade que você conhece em quinze minutos, como ele dizia, e estava certo.

Uma história engraçada que lá vivi foi quando eu parei no posto para perguntar onde era a entrada da cidade e não souberam responder. “Nem no Posto Ipiranga os caras conhecem Borrazópolis”, ele dizia, e usou essa piada por anos repetidamente, como todas as outras das quais a gente ria por educação (desculpa hahaha).

Como lembrança desta viagem trouxe o comprovante de um jogo da Lotomania que fiz pra ele na lotérica, com a esperança de um cidadão borrazopolitano ficar milionário.

Com a sua cidade natal vem a história da Família Borges Furtado, dos meus avós Tarcilia e Leonardo, que não tive o prazer de conhecer pessoalmente, mas que conheço por conta dos nove filhos que eles tiveram e que se tornaram ótimos contadores de histórias.

Como toda história de família do interior, em algum momento, o primeiro filho vai para a capital e depois os outros seguem atrás. Meu pai não fugiu desse roteiro e veio ainda criança morar em São Paulo com a minha tia Nila, sua irmã mais velha e o meu tio Waldemar, a quem eu considero como meus avós de criação, por todo o carinho que sempre tiveram com a minha família e por terem cuidado do meu pai como filho.

Em São Paulo, meu pai estudou e trabalhou muito, e a maioria de suas histórias envolve algum lugar que ele já trabalhou e onde colecionou amigos.

Foi empacotador de mercado e, por isso, fazia questão de sempre embalar as próprias compras e dar uma gorjeta para o jovem empacotador, mesmo que ele não tivesse feito nada.

Foi atendente de padaria e chapeiro e, por isso, fazia os melhores sanduíches do mundo; todo sábado ele engordurava a cozinha inteira.

Foi distribuidor de produtos da Panco e depois de jornais da Gazeta e, por isso, conhecia todas as ruas de São Paulo de cabeça. Às vezes, se perdia, por mais que nunca assumisse isso. Sempre dizia: “Não me perdi, eu me confundi”.

Foi açougueiro e, por isso, sempre sabia quando o açougueiro estava lhe enganando nos cortes da carne e isso também sempre rendia alguma confusão nos churrascos familiares.

Foi eletricista e “pau para toda obra”, por isso, em qualquer casa de amigos, vizinhos ou familiares é possível encontrar algum bico feito por ele. Teve uma porção de clientes que se tornaram amigos, assim como seus respectivos cachorros e animais de estimação, a quem ele amava e dos quais sabia o nome de um por um.

Foi técnico de audiovisual de uma Universidade e, por isso, foi homenageado diversas vezes como o melhor funcionário em muitas colações de grau. Sempre conseguia um dentista, um médico, uma nutricionista, um fisioterapeuta ou qualquer outro profissional para fazer trabalho voluntário com ele e atender pessoas carentes. Foram anos rodando em pastoral da criança, orfanatos, asilos etc.

Desse contato com a vida universitária ele se formou em Direito aos quarenta e cinco anos. E mesmo que ele não tenha chegado a exercer a profissão, temos muito orgulho dessa conquista porque vivemos juntos e vimos o quanto esse feito foi difícil e uma grande vitória para ele.

E, por fim, foi um grande servo de Deus e nos ensinou não só os valores cristãos, mas a agir com caridade e generosidade. Foram muitas ações sociais, doações de alimentos, natais encantados, festas, almoços de pastoral, quermesses e trabalho com Cristo.

Mas, se eu pudesse resumir o meu pai em uma palavra, eu diria que ele foi bondoso. Sua bondade era grandiosa, incapaz de falar um "não" para qualquer um, de recusar auxílio para solucionar um perrengue, uma ajuda ou um carinho. Acumulou a vida toda muitos bons exemplos ajudando a todos, não é à toa que nós recebemos infinitas mensagens de consolo de dezenas de amigos de fases diferentes de sua vida.

Ele era uma pessoa excepcional e altruísta a ponto de, na própria lua de mel com a minha mãe, usar metade da viagem para encher a laje da casa nova dos meus tios no interior e ainda levar a sogra da minha outra tia junto, por que ela tinha muita vontade de viajar.

Na época da Kombi e do jornal, as histórias são infinitas. Levava todos os sobrinhos para passear e viajar, e não eram só dois sobrinhos, eram para mais de dez! Como temos quarenta e cinco primos de primeiro grau - fora os sobrinhos do coração que ele também agregava - ele conseguia até fazer rodízio das crianças.

Eu só me lembro de uma ocasião em que viajamos realmente só nós cinco e enjoamos rápido sentindo falta da gritaria e excesso de espaço. Muitas férias na praia e feriados no interior estão registrados na nossa conta de felicidade.

E como um bom homem, encontrou uma grande companheira com a qual dividiu a vida por vinte e três anos e que adorava arrumar um bico na casa dos outros para ele fazer, hahaha! Foram unidos pelas minhas avós do coração, Nila e Alice. Uma conhecia um rapaz ótimo e a outra conhecia uma moça maravilhosa, deu "match" no quarteirão e o vídeo do casamento deles é o registro audiovisual mais feliz e engraçado que eu já vi na vida.

Muitos amigos, muito amor e muita alegria! No fim da festa no salão da igreja, o padre entrou para acabar com a farra e ele mesmo não conseguiu ir embora e ficou pra dançar. Temos registros dele dançando com a minha mãe com a gravata do meu pai na cabeça, mas a arquidiocese não pode saber disso.

Meus pais tinham orgulho dessa festa de casamento que foi feita por muitas mãos unidas; mãos de cada amigo que dedicou um pedacinho da festa a eles. Tiveram uma vida juntos de muito companheirismo, alegrias e rodeada de pessoas queridas. Dessas vidas, vieram os três filhos que deram a ele o seu papel principal na vida.

Obviamente, todo mundo vai dizer que o seu pai foi o melhor pai do mundo, mas não é só isso, meu pai foi o melhor pai entre todos os pais que eu já conheci.

Muito amoroso, dramático e cuidadoso, parceiro, incentivador e companheiro em todas as horas e nosso fã número um. Lembro que ele que fez todas as minhas mamadeiras, já que a minha mãe não pôde me amamentar. Também lavou e passou todas as nossas fraldas de pano e dividiu desde sempre essa tarefa de cuidar de sua prole.

Levou-nos para passear e viajar centenas de vezes e marcou uma infância muito feliz. (Cabe dizer que descobrimos que ele sempre foi o Papai Noel da creche e deixava a gente por último para receber os presentes, poderia ter sido menos imparcial nisso aí...)

Sempre tinha alguma lembrancinha do mercado esperando por nós em casa. Fiz 27 anos e eu ainda encontrava um pacote de balinhas e de salgadinho no meu quarto. Gostava de levar a gente ao centro nos finais de semana para passear, o famoso programa “perrengão” para ir em todas as lojas de ferramentas e de construção e comer um pastel na rua.

Sempre fazia declarações melosas e dramáticas a cada 5 minutos; a gente amava, mas fingia que não. Sem contar o pai fenomenal que ele foi para Belinha e para Lori; escolhia as frutas que elas mais gostavam no mercado, dava comida na boca e chocolate escondido e levava pra tomar sorvete na sorveteria e fazia elas experimentarem os sabores pra escolher, enquanto a atendente o achava esquisitíssimo e engraçado.

Também sempre foi o nosso maior incentivador nos estudos e formou três filhos por conta dessa dedicação. Meu sonho de entrar na USP era muito mais por ele do que por mim e me sinto honrada de ter cumprido essa missão.

Assim, como a minha mãe, teve uma passagem rápida nas nossas vidas. Mas eles não deixaram nenhuma pendência para trás. Deixaram, sim, três pessoas com a certeza de que foram muito amadas e isso é a melhor coisa que você pode deixar pra alguém.

Infelizmente, não vimos o avô que ele seria, mas com certeza seria dos grandes! Com sorte, paparicou todos os sobrinhos netos como treinamento.

Estou em paz que eles finalmente estão juntos.

Então esse é o Nelsão. O filho querido, o irmão presente, o marido trapalhão, o genro afilhado, o pai amoroso, o tio e cunhado engraçado, um bom namorado e o amigo leal e prestativo.

O amor e bom humor permanecerão em nós.

Nelson nasceu em Borrazópolis (PR) e faleceu em São Paulo (SP), aos 60 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Nelson, Gabriella Furtado. Este tributo foi apurado por Thaíssa Parente, editado por Vera Dias, revisado por Sandra Maia e moderado por Rayane Urani em 5 de janeiro de 2021.