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Paulo Roberto Mosca

1952 - 2020

Generoso, distribuía bolo para os taxistas do ponto da esquina e acolhia cães abandonados em sua casa.

Com seu quase 1 metro e 90 de altura, ele era conhecido como Paulão e podia ser definido por três características marcantes: honestidade, simplicidade e cuidado. “Nunca conheci ninguém tão honesto quanto o meu pai. Gostava das suas contas em dia, detestava cartão de crédito e tinha pavor de dever alguém, por menor que fosse o valor. Ele era muito correto e creio nunca ter conhecido alguém tão evoluído espiritualmente quanto ele”, conta Laís, sua filha mais velha, que continua falando sobre ele:

“Meu pai tinha predileção pelo simples, o pouco para ele já era mais que suficiente. Em contrapartida, doava-se por inteiro à família e aos amigos. Tudo o que recebia, gostava de compartilhar com os demais. Além disso, estava sempre a postos para ofertar gentilezas na vida cotidiana: eram as fatias de bolo que distribuía entre os taxistas da esquina de sua casa, eram as frutas e as conservas que ele levava para a atendente da padaria, o barbeiro e os amigos. De um modo singelo, repleto de carinho, gostava de trazer graça para a vida das pessoas ao seu redor. Essa qualidade se encaixa perfeitamente com o cuidado, sua terceira característica marcante...”

Paulo tinha plena satisfação em agradar e servir às pessoas. Estava sempre a postos para realizar um favor, ofertar algo ou demonstrar palavras de incentivo a alguém. Desde criança, nutria um carinho especial pelos animais e sua mãe contava que todo cãozinho que encontrava na rua, levava para a casa.

Paulo foi casado com Maria Brasil por cerca de quarenta e cinco anos. O casal se conheceu em um ônibus circular, na década de 1970, quando voltavam para casa após um passeio na área central de Campinas. Nessa época, o centro da cidade era o ponto de encontro das pessoas, que para lá se dirigiam nos finais de semana para passear com familiares e amigos, comer algo ou simplesmente apreciar o movimento ao redor, tamanha a tranquilidade do lugar.

De temperamento pacífico, foi um excelente marido, extremamente companheiro e parceiro da esposa. Tiveram as filhas Laís e Érika, para quem sempre ofereceu o melhor possível com carinho e consciência de suas atribuições. Vivia com as filhas uma relação de extrema confiança e, com uma calma invejável, as aconselhava sobre os mais diversos assuntos e as deixava livres para fazerem suas escolhas com a certeza de que as tinha educado com valores e princípios.

Era avô de Derek e Paolla, filhos de Érika, perpetuando com os netos o amor e o cuidado que sempre dedicou à esposa e às filhas. Frequentemente buscava as crianças na escola, as levava para o parquinho e aproveitava cada segundo com elas. Foi, inclusive, fundamental no processo de alfabetização de Derek, pois ensinava o neto a ler utilizando folhetos promocionais de mercados. “Por fim, prontamente o Derek identificava palavras como picanha e costela. E volta e meia, era comum que pessoas dissessem o quanto o meu pai era um avô presente e afetuoso”, conta Laís.

Iniciou sua vida profissional quando, aos 14 anos, deixou o sítio em Jaguariúna, onde morava com a sua família, e rumou para Campinas. Começou então a trabalhar com o pai e um tio, ambos caminhoneiros, e acabou abraçando essa profissão até alcançar a sua aposentadoria, em 2014.

Naquela época, na década de 1970, como ele mesmo dizia, dirigir caminhões era algo rentável, já que os veículos não eram tão onerosos. Amava o seu trabalho e, depois do seu falecimento, a família soube de uma história relacionada ao seu ofício. Certa vez, ele estava passando em frente a um dos hospitais da cidade e avistou o caminhão de um colega. Preocupado, decidiu parar por ali e procurar o amigo no local para verificar se precisava de algum auxílio. Logo encontrou o rapaz que, desolado, contou-lhe que a filha estava em trabalho de parto, mas que o pai da criança não quis assumi-la.

Sabiamente, Paulo o encorajou dizendo que tudo daria certo, que naquele momento o importante era a moça e o bebê estarem com saúde e que o amigo seria uma grande referência para aquela criança. Disse ainda que, caso algo fosse necessário, estaria à disposição para o que desse e viesse. Tempos após a partida de Paulo, a filha desse amigo, muito emocionada, revelou o impacto que essas palavras tiveram em seu ambiente familiar.

Em suas horas vagas, Paulo gostava de reunir a família para churrascos, viagens para a praia ou para aproveitarem a chácara da família. Era onde ficava o seu "pesqueiro", como seu pai chamava o local — um rancho à beira do Rio Jaguari, em Jaguariúna. Ali, com certeza, era o seu lar e o seu lugar neste mundo, conforme Laís se recorda, com saudade: “Ele gostava muito de pescar! Quando era mais novo, inclusive, seguia com amigos para pescarias no Mato Grosso e até na praia costumava jogar uma isca. Então, era no pesqueiro da nossa família que presenciávamos o meu pai em seu estado mais puro de plenitude. Como dizem que o sentimento quando compartilhado é redobrado, ficávamos em êxtase quando íamos pescar com ele: arrumava com todo capricho as iscas nas varinhas para pescarmos na beira do rio”.

Também gostava de aproveitar o tempo na chácara para plantar flores e frutíferas como manga, abacate, jabuticaba, limão e abacaxi; além de legumes como a mandioca, relembrando os tempos de infância. Além disso, ainda preparava conservas de cebolinha, nabo, pepino e pimenta. Pelo seu semblante era possível perceber a satisfação que sentia em plantar, cuidar e colher os frutos de seu trabalho. Ele planejava permanecer com esse tipo de vida, dedicando-se ao cultivo de flores e árvores frutíferas, até o fim de seus dias, mas, infortunadamente, não deu tempo...

Conta Laís que Paulão tinha um cavaquinho, presente de um amigo bem mais velho do que ele e falecido há muitos anos. "Virava e mexia, ele pegava o instrumento e tentava tocar, mas dele nada saía, ouvia-se apenas um barulho, acompanhado de sua cantoria". Era quando a esposa, indignada, pedia que parasse com aquilo, enquanto as filhas choravam de tanto rir da situação. Sempre que se lembram dessa cena, misturam risadas e muita, muita saudade.

“Como um verdadeiro 'caipira de sítio' do interior paulista, meu pai gostava de moda de viola. Toda vez que, por algum momento, esse som se faz presente, meus olhos ficam marejados de lágrimas e imediatamente me lembro dele. Ele também gostava bastante de estrogonofe e da culinária sertaneja: regalava-se ao comer rabadas, mocotós, canjicas, pés de moleque e doces de abóbora”.

A filha é pródiga nas boas lembranças com o pai: “Tivemos juntos inúmeros bons momentos como em viagens à praia e passeios de barco. Entretanto, acredito que o momento mais emocionante que vivi ao lado do meu pai foi quando ele entrou na igreja comigo quando me casei. Apesar de o casamento não ter dado certo, eternamente levarei comigo a emoção que foi ter vivido essa memória tão especial com ele”.

Laís conta ainda que, após o seu falecimento, diversos conhecidos disseram o quanto ele era alguém “fora da curva” e relatavam algum momento em que ele demonstrou todo o seu cuidado. O dono da barbearia que ele frequentava contou que, em determinada ocasião, tossia bastante enquanto cortava seu cabelo. Então, passado algum tempo, ele retornou com um chá de mel com limão e gengibre, dizendo ao amigo barbeiro que aquela infusão o faria sentir-se melhor. Este era o mesmo chá que ele preparava para as filhas quando estavam doentes.

Um sobrinho também sempre relata com gratidão que, se não fosse por ele, sua família não teria construído a vida em Campinas, já que ele sempre os ajudava a conseguir trabalho.

“Eu poderia escrever páginas e páginas sobre meu pai" diz Laís. "É muito amor e ele nos faz muita falta. Para ele o que realmente importava na vida era a família e os momentos em família. Não se importava com bens materiais, que considerava passageiros. Era um homem humilde, simples, desapegado, que tinha um carro velho e para ele estava bom. Cuidava da família inteira e sua vida foi exemplo de honestidade e simplicidade, buscando em pequenos gestos tornar melhor o dia de alguém”.

“Meu pai plantava flores e plantas na praça próximo de casa e hoje vejo suas plantinhas crescerem cada dia mais e ele não está aqui para acompanhar e vê-las desabrochar. Tinha ótima saúde, era um pai, marido e um avô maravilhoso. Sou suspeita em dizer, mas o meu pai era uma pessoa sensacional! Diariamente, agradeço a Deus pela oportunidade de ter sido sua filha. Ele, certamente, era o pai que todos mereciam ter e a saudade dele só aumenta”, conclui Laís.

Paulo nasceu em Jaguariúna (SP) e faleceu em Campinas (SP), aos 67 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Paulo, Laís Roberta Mosca. Este tributo foi apurado por Lucas Cardoso e Andressa Vieira, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Ana Macarini em 13 de julho de 2023.