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Quiteria Cordeiro dos Santos

1934 - 2020

Aos 52 anos voltou a estudar e se formou em Letras. Adorava os holofotes, sempre sonhou em aparecer na TV.

Professora, vendedora, corretora de imóveis e artesã, essa foi Kiki. Pernambucana que nunca teve medo de trabalhar, doou todos os dias de sua vida para o sustento e o bem-estar de sua família — sua grande paixão. Família essa, que podemos chamar de completa, era tradição de domingo reunir seus 12 filhos, 30 netos e 15 bisnetos.

Telma, Tebio, Celma, Jarival, Zelma, Nelma, Jairon, Simone, Cynara, Márcio e Márcia que são gêmeos e Danilo, o neto que ela adotou como filho. Ai deles se não estivessem presentes no almoço de domingo. Quiteria amava cozinhar, às vezes exagerava na quantidade de comida, mas queria mesmo que todos saíssem de sua casa sempre com a barriga cheia; fazia o bolo de milho mais famoso da família, não tinha quem provasse e não se apaixonasse pela obra de arte que ela fazia com milho, ovos e farinha.

A vida nem sempre foi fácil, no interior a fome começou a atingir sua casa, e nos anos 70, Quiteria foi para Recife com a cara e a coragem, tentar a sorte de uma vida melhor. Trouxe consigo todos os filhos e suas duas vaquinhas, bem magras por sinal. Passou a vender leite, o que por muito tempo, foi o sustento de todos. Mesmo com tantas dificuldades, nunca abandonou nenhum de seus filhos, lutou todo dia para que sua família tivesse um futuro melhor e todos se tornassem "gente de bem", como ela dizia.

Depois de direcionar seus filhos aos estudos, foi a vez dela, Quiteria voltou a estudar e se formou em Letras, realizou seu sonho de graduação e, a partir daí, passou a ensinar para crianças e adolescentes não somente gramática, mas também sobre a vida; completou a missão de orientar seus alunos por tantos anos e se tornar amiga de cada um deles. Lecionava com tanta satisfação, tinha um grande amor por esta profissão, aliás, profissão era o que não lhe faltava, após se aposentar, foi trabalhar como corretora de imóveis e mesmo com tanto serviço conseguia um tempinho para fazer seus artesanatos, era de tudo um pouco, colares, bolsas, colagem em tecido, etc...

Só havia uma coisa que Kiki gostava mais do que trabalhar: fazer aniversário! Ah, que alegria era essa data, todo ano tinha que ter festa, sempre muito animada, claro. Regada à música e bons amigos, os amigos dos amigos também eram convidados, claro. Para ela sempre foi uma grande celebração comemorar a vida.

Quiteria era muito ativa, dirigia, dançava, gostava de ser vista, lembrada em cada lugar que visitava. Amava viajar, realizou um de seus maiores sonhos, foi para a Disney.

Usava roupas modernas, seu cabelo cor de carmim e sempre muito bem-penteado, amava se enfeitar, glamourosa, arrumava-se toda para ir passear no shopping, era muito vaidosa.

Infelizmente, aos 82 anos um baque em sua vida, Quiteria foi diagnosticada com ELA — Esclerose Lateral Amiotrófica, uma doença que afeta o sistema nervoso de forma degenerativa e progressiva e acarreta paralisia motora.

“Depois do diagnóstico foi ficando cada vez mais debilitada, a voz começou a falhar, passou a ser dependente de nós para tudo. Perdeu os movimentos, mas continuava muito lúcida”, lembra sua filha Zelma.

Quando foi diagnosticada com Covid-19, o filho Danilo ficou com ela até o fim, “ela amava este filho”, conta Zelma, que também estava junto da mãe, mas por ter sido infectada teve quer ficar em isolamento.

Ela conta que sua mãe se comunicava apenas pelo olhar e de tanto que gostava de viver, acredita que Kiki ainda não achava que era sua hora de partir.

Para que todos possam ver e ouvir a sua história, Zelma define sua mãe como uma pessoa que amava a vida e que fez tudo o que pôde pela família.

Haverá um espaço vazio na mesa aos domingos, o qual deixa tantas saudades, de sua presença, da tapioca e do café que Quiteria fazia para depois do almoço.

Quiteria nasceu em Pesqueira (PE) e faleceu em Jaboatão dos Guararapes (PE), aos 85 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Quiteria, Zelma Guadalupe. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Beatriz Brito, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 1 de agosto de 2020.