1929 - 2020
Quem a visitava sempre levava deliciosos quitutes para casa.
Raimunda era uma daquelas pessoas para quem tudo sempre estava muito bom. Não importava o que acontecesse. Ela nasceu e viveu a maior parte de sua vida em Itamarandiba, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Embora também tenha morado em Belo Horizonte, Contagem e Corinto - todas cidades do mesmo estado - a simplicidade, a simpatia e a alegria dos moradores do Vale nunca saíram dela.
Assim como em sua cidade natal, as portas da casa de Raimunda estavam sempre abertas para quem chegasse. A neta Angélica recorda que nas visitas a casa da avó, a mesa era sempre farta.
Em Itamarandiba, ela e o marido, José Pedro Ramiro, eram produtores rurais. Da terra tiravam o sustento da família e o excedente era vendido em comércios da região. Também ajudava a complementar o orçamento com seu trabalho no hospital e com as vendas de salgados e "quitandas" - que em Minas Gerais é tudo aquilo que acompanha o café, exceto o pão.
A mudança para Belo Horizonte com o marido e alguns de seus filhos foi para ir em busca de uma vida melhor. Os mais velhos foram antes para a capital mineira e prepararam o caminho para a chegada dela. Quando ficou viúva, continuou firme, sendo a referência para os nove filhos.
A habilidade em cozinhar acabou virando um negócio. Seus salgados e doces ficaram famosos em Minas Gerais. Sempre que visitava parentes no interior, alguém pedia para que preparasse alguma de suas gostosuras.
Tal talento foi compartilhado com seus filhos. Lúcia, Geralda, Dinha, Eliane e Elizabete também fazem salgados para vender. Já o filho Juscelino, conhecido como Jota, trabalhou no ramo de massas e em bares, preparando deliciosos petiscos.
Sempre que retornava ao interior, graças a seu temperamento extrovertido e alegre, Raimunda sempre era recebida com muito carinho por parentes e amigos. “Era impossível sair com ela sem demorar no mínimo uma hora. Sempre muito querida, todos que a viam queriam saber e contar as novidades. Assim, as caminhadas eram entrecortadas por muita prosa", conta Angélica.
Quando o assunto era alguma receita, Dona Raimunda quase nunca conseguia passar um modo de preparo bem certinho. Ela dizia às filhas que fazia suas "quitandas" sem referência de medidas. Não tinha receita anotada ou decorada. Fazia. Simplesmente fazia.
“Vó Raimunda” era uma pessoa muito especial, amada por todos que tiveram o privilégio de conhecê-la. Um exemplo desse carinho é o depoimento da neta Ana Júlia, de 16 anos. Com sua voz doce, ela conta que sente muita saudade da avó e nunca se esquecerá da presença dela em sua festa de 15 anos. Foram destacadas a simplicidade, a humildade, a fé em Deus e a gratidão dela pelas pequenas coisas da vida. Por sua vez, Geralda Stela, outra filha, ressalta que a mãe sempre foi uma pessoa muito bem resolvida. Muitas vezes, antes que o esposo José tomasse alguma decisão, ela já havia decidido.
Dinha destaca que a mãe, mesmo não tendo estudo nenhum e não sabendo ler e escrever, “sempre transmitia para a gente as palavras certas”. Raimunda conversava de igual para igual com qualquer pessoa. Entre os familiares é muito comum usarem a expressão “como dizia minha mãe ou minha avó”. Dessa forma, lembram mais ainda das coisas que ela falava.
A companheira da vida inteira de Dona Raimunda foi a filha Lúcia. As duas tiveram uma ligação muito intensa. Lúcia, a única filha solteira, morou com ela dividindo a sua caminhada, buscando sempre dar os melhores cuidados e afetos àquela que a gerou.
A emoção e orgulho da avó, quando Angélica formou-se em Terapia Ocupacional, era fácil de perceber. O mesmo aconteceu no dia do casamento da neta, pois ela mesma escolheu o modelo do vestido que iria usar no momento da celebração. Conta, emocionada, como a avó, com um olhar de encantamento, admirou o vestido de noiva. Tocava nas rendas, dizendo que tinha ficado lindo. No dia do casamento, foi Dona Raimunda quem, muito orgulhosa, levou as alianças até o altar.
Em cada festa, os discursos dela eram uma marca. Aproveitava a atenção de todos para, com belas palavras, manifestar sua gratidão a Deus pela sua saúde e de todos, pela benção da numerosa família com nove filhos, vinte e cinto netos e vinte e três bisnetos.
Aos 91 anos, Raimunda ainda fazia suas compras, viajava e cozinhava. Mantinha o mesmo hábito de fazer seus salgados e de distribuí-los.
Raimunda segue viva. No carinho imenso demonstrado pelas palavras de Angélica ao falar dela. Na saudade do último abraço recebido por Ana Júlia. Na tentativa das filhas de acertarem as receitas que eram feitas de cabeça pela mãe. Nas ligações de Lúcia para os parentes buscando saber como vão as coisas, inspirada no exemplo da mãe que cotidianamente ligava para todos. E no hábito da família de pedir a benção, na ora da chegada e da saída.
Raimunda nasceu em Itamarandiba (MG) e faleceu em Contagem (MG), aos 91 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Raimunda, Angélica Ramires Santos. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Rayane Urani em 27 de outubro de 2021.