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Ranulfa Borges Santana

1946 - 2020

Graças à sua fé, profetizava o futuro dos filhos e amigos; e, acima de tudo, acolhia a todos dando lições de respeito à diversidade.

Ranulfa foi uma mulher guerreira e de muita fé. Teve dois filhos, Renilton e Creone, e casou-se com Demeucredio. Criou seus meninos com muita sabedoria, amor e diálogo. Antes da partida pôde acompanhar os primeiros passinhos de João Miguel, seu neto.

Renilton, o primogênito, conta que sua mãe cresceu com muita liberdade. A casa dos pais de Ranulfa era sempre movimentada, cheia de gente e com muitas festas. Desde cedo, Ranulfa aprendeu a socializar, fazer amizades e a dançar até não poder mais. Ela dizia abertamente que, quando jovem, não queria ter filhos e Renilton por vezes a indagava: "Mãe como é que a senhora ia então pra certo lugar?" Ela respondia "Eu levava você! Chegava lá na festa te firmava na cintura e ia dançar". Ela dançava a noite inteira comigo na cintura: bailes do interior, nos forrós, nas festas de foliões, de Reis. E eu fui crescendo assim, minha relação com ela sempre foi muito boa”.

Ranulfa foi uma mãe muito amorosa, dialogava abertamente com seus filhos sobre a história dela e a da família. Renilton, era filho somente de Ranulfa, mas considerava Demeucredio como pai adotivo. O primogênito nasceu diferente da mãe em personalidade e cor, nas palavras dele "o filho branco". Renilton relembra emocionado que sua mãe era era mais extrovertida e intensa, enquanto ele é tranquilo - uma diferença que permitiu o nascimento de uma relação equilibrada e com poucos percalços.

O filho relata ser capaz de imaginar o que representou uma mulher negra ter um filho branco. “Na década de setenta uma mulher negra, descendente, querendo viver uma vida de liberdade e experiências e ter um menino loiro como eu era, não deve ter sido nada fácil. Ela seguiu sofrendo todas as repressões e discriminações possíveis e ainda - para aumentar a complicação - era mãe solteira. Hoje se chama mãe solo. Hoje está bem evoluído, mas na época, isso era inadmissível."

Ranulfa tinha muitas convicções interessantes e uma fé firme. Sua busca espiritual a levou a passar por três práticas distintas: católica, espírita e evangélica. O coração da mãezona aquietou-se na comunidade evangélica e ali permaneceu mais de 20 anos, até Deus a levar. Na comunidade era chamada carinhosamente de Grande Ranulfa, como conta Ellen, sua amiga. Apesar de suas convicções, deixou os filhos escolherem os próprios caminhos de fé, e ensinou-os muito sobre o Deus que ela adorava.

Para a Grande Ranulfa Deus não era o responsável pelo sofrimento humano porque Ele não deseja a situação de fome e o contexto de violência para ninguém, pelo contrário, Deus veio para libertar a todos. O filho relembra que ela dizia que somos passageiros nesse mundo e que necessitamos viver o mais intensamente possível, mas, respeitando as pessoas, a vida, a natureza, sendo responsável, honesto, verdadeiro e amando o próximo como princípios de vida. Falava sobre a importância do estudo e o respeito às mulheres, não admitindo violência contra elas.

"Me ensinou também obediência aos mais velhos, me ensinou não xingar palavrões, a não desrespeitar os adultos me ensinou não matar nem um passarinho, não levantar a mão pra ninguém. Me ensinou que o dia que se um dia - no auge do meu nervosismo - eu tivesse vontade de levantar a mão contra uma pessoa do sexo feminino era para eu dar as costas e sair sem levantar a mão. Me ensinou que se eu decidisse me casar, devia procurar viver sem brigar e sem levantar a mão e bater na mulher, de jeito nenhum, porque em mulher não se bate”.

Ensinava também sobre a importância de se ter fé, coragem, força, determinação e que a morte não significava o fim, mas sim a partida pra outra vida na eternidade. Ela alertava que nem sempre se pode ficar rico por meio do trabalho, mas que a essência da vida não é ficar rico e sim viver bem e conviver bem com as pessoas, ter saúde, sorrisos, participar muito da comunidade. Para ela ser feliz não era ter bens materiais e ainda explicitava: “O ouro o ladrão rouba; o ferro a ferrugem come; madeira, a traça e o cupim comem, mas as lembranças boas dos nossos atos ninguém tira”.

Para o filho, ela foi uma mulher à frente de seu tempo em relação à convivência com a diversidade: “Me ensinou também que cada pessoa faz a opção sexual que deseja e que eu tenho - mesmo discordando - que respeitar todas essas opções. Dizia que da mesma forma, os dependentes químicos - fosse de álcool ou de drogas - é um ser humano igual a gente e que tem que ser tratado com respeito, que temos que lhe oferecer ajuda. Me ensinou que roubar, usar violência, fazer o mal ao próximo, não vale a pena e que só traz coisas ruins. Me ensinou que guardar ódio, rancor, mágoa, não faz bem pra saúde. Me ensinou que o pior dos sentimentos é ver pessoas passando dificuldade para se alimentar num país tão rico e num mundo tão farto. Me ensinou também que dinheiro não era tudo, que o ouro não era e não é tudo e me ensinou também que pra viver muito basta sorrir e tratar o próximo bem e comer bem e fazer tudo que tem vontade”, conta Renilton.

Como mãe, podia ser definida como a melhor mãe do mundo. Um exemplo de força, beleza, sabedoria, equilíbrio, fé, harmonia e esperança. Uma pessoa aberta ao diálogo e que conseguia ver muito além do futuro, uma pessoa representante de Jesus na Terra que, com sua humildade e sensatez, sabia acolher os excluídos, as pessoas em dificuldades econômicas, sociais, psicológicas, religiosas e que sabia se fazer mãe de todas as pessoas que a procuravam em situações de aflição.

Sua atuação religiosa ia além de estar presente na comunidade e seguir os mandamentos de Cristo. Às vezes, Deus colocava certezas e clarezas em seu coração sobre ela e sobre outros. Palavras chamadas de profecias. Renilton lembra que um amigo de Goiânia procurou sua mãe para receber conselhos amorosos, ela lhe alertou que a mulher, que a razão de seu sofrimento, não era a adequada para sua vida e que ela o deixaria. E logo os amigos viram se cumprir a previsão da Grande Ranulfa.

Certa vez ela proferiu palavras muito significativas sobre o futuro do primogênito: “Ela falou pra mim que eu ia ser muito bem-sucedido na minha profissão, que eu ia atuar com crianças e adolescentes. Na época, quando eu completei 18 anos, eu nem pensava em atuar nessa área e hoje eu sou bem-sucedido na minha área profissional como analista de política de assistência social, especialista pós-graduado em infância, juventude e criança. Servidor efetivo do governo do estado de Goiás. Então também foi uma profecia dela, eu nasci sempre ancorado nessa força da sabedoria”.

Ranulfa deu tanto amor às pessoas que as homenagens não ficaram apenas em prosa, transformaram-se em poema dentro do coração de Ellen Oliveira, amiga que considerava Ranulfa como sua mãe. A pedidos da filha do coração, transcrevemos aqui suas doces palavras:

"A morte é a continuação da vida.
Ranulfa representou neste mundo material uma mulher guerreira: conseguiu criar seus filhos.
Conhecida e amada por todos.
Sobreviveu às margens da pobreza,
Passou dificuldades, mas não desistiu.

Mulher de fé: ajudava a todos.
Sua simplicidade era contagiante,
E o amor brilhava em seus olhos.
Uma das pioneiras no Jardim Nova Esperança.

Abraçava a todos com afeto,
Lutou por muitos!
Vivenciamos momentos incríveis ao seu lado.

Nós continuamos vivendo no mundo das criaturas,
E, hoje ela vive no mundo do Criador.
Que seu nome seja pronunciado como sempre foi: a grande Ranulfa.

Sem nenhum traço de tristeza,
Apesar do vazio que nos encontramos
Dona Ranulfa sempre estará em nossos pensamentos!

Com a lembrança de um coração sempre aberto,
Seguiremos em frente por você.
Obrigado por ter dado o melhor amor do mundo para todos que te conheceram".

Ranulfa nasceu em Itaguaru (GO) e faleceu em Goiânia (GO), aos 74 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo filho e pela amiga de Ranulfa, Renilton Santana e Ellen de Oliveira. Este tributo foi apurado por Claiane Lamperth e Emily Bem , editado por Vera Dias, revisado por Claiane Lamperth e moderado por Ana Macarini em 24 de janeiro de 2022.