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Raymundo Thadeu Andrade Gouveia

1946 - 2021

Trabalhou muito e quando se aposentou só queria viajar e passear com sua "Abelha Rainha".

Raymundo Thadeu, o Thadeu, como era chamado por todos, amava a vida e viveu com alegria cada experiência que o tempo lhe apresentou. Apaixonado pela família, gostava de ver todos reunidos bebendo uma “gelada” (expressão usada por ele para se referir à cerveja) para refrescar o calor de Belém, no Pará.

Filho de dona Maria Aurora, a “vó Dora” e Raimundo, o “vô Zito”, trabalhou um bom tempo com o pai e o avô, José, de origem portuguesa, numa olaria, onde eram produzidos tijolos, telhas e manilhas para esgoto. Na fábrica ele era uma espécie de faz tudo e “o braço direito dos dois”, cuidando de questões administrativas, sendo motorista do pai e do avô e, inclusive, dormindo na olaria para cuidar da preparação do barro que seria usado na produção do dia seguinte.”

Quando já era casado com Jailma, o grande amor de sua vida, recebeu um terreno como indenização por sua saída da olaria. No imóvel, localizado na orla de Icoaraci, distrito de Belém do Pará, ele construiu sua casa e o Restaurante Matapi, um estabelecimento com o qual sonhou durante parte da vida, erguidos com a participação da “esposa e os filhos que iam para a obra quebrar pedras”.

Um dos grandes prazeres de Raymundo Thadeu, o “Tatá”, como era carinhosamente chamado na família, era ter filhos, netos e agregados reunidos no domingo para o almoço. Na casa, que ficava nos fundos do restaurante, os encontros eram pura alegria e fazem parte das memórias de infância e adolescência da neta Lorenna. Inesquecível o paladar do peixe ao molho de camarão que o avô pedia que preparassem na cozinha do restaurante para que os netos pudessem saborear. Com o transcorrer do tempo e o crescimento da família com filhos, agregados, netos e bisnetos, uma das marcas dos encontros eram os momentos em que tocava a música “Metal Contra as Nuvens” da banda Legião Urbana. Entre os versos da longa letra da canção considerada a música da família, Lorenna destaca o trecho que diz “E nossa história não estará pelo avesso, assim sem final feliz. Teremos coisas bonitas pra contar…”

Retornemos um pouco na linha do tempo, para dizer que Thadeu era um apaixonado pela esposa Jailma, com quem gerou os filhos Ricardo, Paulo, Maurílio, Déa e Catarina. A cumplicidade do casal e o cuidado de um com o outro eram evidentes. Assim, ao longo do relacionamento, dona Jailma, a quem chamava de “sua dona”, foi ganhando apelidos carinhosos. Um deles era “Jajá”, mas o que ele mais usava era “Abelha Rainha”. Com o envelhecer, quando Thadeu precisava de alguma coisa, afetuosamente chamava: “Venha cá, minha velha”.

Entre as muitas canções da Música Popular Paraense apreciadas por ele, está a canção de Ted Max chamada “Ao Por do Sol”. Uma canção de amor, com versos que dizem bastante sobre o olhar carinhoso que Tatá sempre reservou para a mulher com quem viveu por mais de cinquenta anos e é considerada a música do casal.

Outra paixão de Thadeu era o Clube do Remo, popularmente chamado de “Leão Azul”. Não importava em qual série o clube estivesse disputando o campeonato. Tatá sempre ficava nervoso durante as partidas, torcia, xingava e comemorava muito cada gol e cada vitória. Lorenna lembra com felicidade as muitas vezes que ela, o pai, Ricardo, e o avô iam ao estádio. Ela resume dizendo que “três gerações da família se juntavam para torcer pelo Remo”.

Tatá era tão apaixonado pelo time, que a família inteira era Remista. Nos aniversários dele, quem queria agradar dava logo uma camisa do clube de presente. Desse jeito, ele foi colecionando muitas camisas, guardadas com todo cuidado e que foram herdadas pelo filho Ricardo. Ao final do canto de parabéns, tinha o tradicional grito de guerra do time. Aos poucos, o grito passou a acontecer nas celebrações de aniversário de toda a família.

Os dias de jogo eram momentos de apreciar o amado sabor da cerveja gelada. Podia ser em casa ou nos estádios “Mangueirão” ou “Baenão”. Com uma felicidade absoluta, ele tomava o primeiro gole e sorrindo, dizia “Ah, uma gelada!” Nos dias de vitória do Remo, como não poderia deixar de ser, tinha sempre a garrafa de comemoração.

Depois da aposentadoria, Thadeu realizou um outro sonho que tornou-se seu lugar predileto no mundo. A casa no povoado de Joanes, na Ilha do Marajó, onde ele e dona Jailma passaram a morar. Eles foram os primeiros veranistas do local e logo foram se envolvendo bastante com a vida da comunidade, participando das festas do boi, das celebrações da igreja local e outros momentos comunitários.

O imóvel era sempre muito bem cuidado. De bermuda tactel, Tatá cuidava do quintal e fazia as manutenções necessárias para que a casa estivesse sempre pronta para receber os parentes e amigos. Ele ligava o som e enquanto ouvia música fazia todo o serviço alegremente. Entre os hits que ouvia durante as tarefas, os prediletos eram canções da banda Kid Abelha, pois ele era apaixonado pela cantora Paula Toller.

Nas férias de julho, época do “verão paraense”, a casa, que era bem grande, chegou a abrigar cerca de setenta pessoas. Nos carnavais, muitos da família preferiam seguir de barco para a ilha. Com uma infinidade de fantasias providenciadas por Tatá e sua Abelha Rainha, a família organizava até desfile, num cortejo de aproximadamente cem metros de pura alegria.

Entre as memórias mais especiais da neta Lorenna associada às casas do avô, estão os muitos momentos em que ela insistia em se deitar na rede dele. Entre sorrisos, Lorenna recorda que “para me trolar, quando ele via, chegava perto e dizia que eu era a neta que mais gostava "do fedorzinho dos puns que ele soltava", porque não saía da sua rede”. Os dois riam e, com alguma frequência, a neta seguia descansando.

Entre os que sempre eram muito bem acolhidos na casa da ilha, estavam os vizinhos Mário e Regina. Morando há apenas dois quarteirões de distância, Thadeu e Jailma dividiam com eles bons momentos na tranquilidade do lugar. Em meio ao cotidiano e a muitos encontros e conversas regados à cerveja gelada, a amizade foi se consolidando e, juntos, os casais fizeram, inclusive, uma viagem para conhecer o Chile.

Por falar em viagens, é bom dizer que Tatá e sua amada gostavam muito de viagens. De barco, carro, ônibus ou avião, frequentemente, os dois aproveitavam para conhecer outros lugares no Brasil e na América Latina. Assim, viajaram para localidades em Minas, São Paulo, Paraíba e Argentina.

Nos momentos de sossego e tranquilidade em meio à exuberante natureza e o silêncio do lugar, Tatá gostava de ler. Seus livros favoritos eram “O lobo do mar”, "Jack London" e "Vinte mil léguas submarinas". O gosto pela literatura, compartilhado com a filha Dea e a neta Iara, produziu um momento encantador. De forma combinada, com direito à conversas sobre as histórias, os dois trocavam livros que eram emprestados mutuamente. Entre as obras que Iara recorda de ter lido em parceria com o avô estão “A Menina Que Roubava Livros”, “Drácula”, “O Caçador de Pipas, “A Cidade do Sol”.

Thadeu, que amava a família, sua “Abelha Rainha”, o clube do Remo e a Ilha de Marajó na mesma intensidade, segue vivo na realização de seu pedido de que a família sempre cuidasse da casa da ilha, para que não ficasse abandonada e continuasse em condições de seguir abrigando sua “Abelha Rainha” e recebendo parentes e amigos.

Raymundo nasceu em Belém (PA) e faleceu em São Paulo (SP), aos 74 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Raymundo, Lorenna Freire de Sá Gouveia. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Ana Macarini em 5 de outubro de 2023.