1964 - 2020
Com facilidade e memória invejável, ele desembaraçava rapidamente qualquer situação.
Desde seu nascimento, o bairro de Ricardo Albuquerque foi cenário para que Roberto, ou simplesmente Beto, fosse aos poucos deixando suas marcas no subúrbio da Zona Norte carioca.
O filho de Martinho Luiz e Eunice teve uma infância regrada e já aos 14 anos trabalhava no comércio atacadista no centro da cidade do Rio. Numa outra etapa tentou montar seu próprio negócio, mas seu investimento na empresa que fornecia quentinhas para uma fábrica não prosperou. Responsável e senhor de suas obrigações ele precisou recomeçar. Nunca escolheu trabalho e atuou como segurança, carregador e encarregado. Em alguns momentos chegou a contar com a ajuda de amigos e familiares para seguir honrando seus compromissos.
Nas idas e vindas, para trabalhar, ou para resolver questões pessoais na região central do Rio de Janeiro, Roberto pegava o trem. A partir do ramal Japeri, seguia observando a paisagem até o desembarque na Central do Brasil. Muitas vezes, durante os cerca de 40 minutos de viagem, aproveitava para puxar assunto com algum conhecido que embarcava no mesmo vagão.
Durante quase todo esse tempo, Roberto contou com a parceria e o amor de Rozilene. Com apenas 15 anos ele a conheceu através de um desses olhares que dizem de amor. Começaram a namorar e anos depois o casal ficou grávido de Joice. Para os padrões morais da época, engravidar antes do casamento poderia significar muitos problemas.
Ao saber da notícia da gravidez, o pai de Rozilene, o senhor Ismael, logo quis conversar com Roberto. Sério e preocupado, o pai da moça disse a ele que se não quisesse assumir a criança, a filha tinha pai que iria acolher o neto. Mas movido pelo amor que sentia por Rozilene, ele disse que não era o caso, pois ele queria se casar com ela. A decisão de Beto, de imediato, conquistou seu Ismael e desde então os dois tiveram um excelente relacionamento.
Ainda muito novos, foi necessário um tempo para preparar o casamento e se estruturarem para seguir como família. Como Beto ainda não completara 21 anos, idade com a qual seria considerado "de maior" na época, foi necessário que a mãe dona Eunice assinasse a documentação no cartório.
O casamento gerou mais três filhos. Thalles, Samuel e Thais cresceram num ambiente harmônico, repleto de cumplicidade e parceria entre os pais, que conforme sintetiza a filha Thais “eram muito amigos, acima de tudo”. Rigoroso, Roberto estava sempre atento às companhias de cada um e empenhado em garantir os estudos das crianças. Na cabeça dele era como se os filhos tivessem que ser muito bem-educados e quase perfeitos.
Presente e sempre prestativo, em muitos momentos ele se dispunha a estar à frente da solução de questões de todos os filhos. Foi assim quando a filha Thais, já adulta, precisou reformar seu apartamento. Como viajava muito a trabalho, pediu ajuda ao pai para cuidar da obra e assim foi feito.
A única neta, Helena, filha do Thalles , era um grande xodó dele. Ela sempre o chamava de vovô Beto e, com seu jeitinho, conseguia tudo o que queria na casa dos avós. A mãe de Helena diz que ela se parece demais com Roberto, pois gosta de ser engraçada e também adora contar uma, digamos, fofoca, lembra Thais dando uma gargalhada. Com apenas 4 aninhos ela já gosta de narrar fatos que presencia e de ser popular.
Uma das manias de Roberto era puxar conversa com as pessoas. Às vezes com quem ele nunca tinha visto. Thais conta que “alguém ia chegando e ele logo dizia: 'Senta aí... vai ficar em pé? Vamos bater um papo'. Não demorava muito, ele dava uma trela e a pessoa contava a vida inteira".
Beto não perdia a oportunidade de fazer festas, que ele tanto gostava. Fazia questão de acender e cuidar da churrasqueira. Às vezes tinha um quilo de carne e uns refrigerantes e ele falava com mais gente, organizava, cada um trazia alguma coisa e o churrasco começava sem ter hora para terminar.
Com um senso de humor magnífico, não perdia a pose nem em situações que para muita gente torna-se aflitiva. Certa vez, recebeu um trote de alguém que dizia ter sequestrado o filho. Como já ouvira notícias sobre essa tentativa de golpe, ele fez troça da pessoa que estava do outro lado da linha devolvendo. “Ah, você está com o meu filho? Pode levar, ele não presta mesmo. E olha, toma cuidado porque ele come muito viu?”
Outro hábito marcante de Beto era o fato de gostar de ficar sem camisa. No verão carioca ele só andava assim. No frio, Rozilene fazia com que ele vestisse uma blusa para se proteger e não ficar gripado. Zelosa ela sabia que não era bom que ele adoecesse, pois sempre que tinha algum problema de saúde a glicose se desregulava.
Um outro exemplo de cuidado de Ninha, a forma carinhosa com que Beto se referia à esposa, acabava por ser engraçado e provocar muitas brincadeiras dos filhos. Ele tinha bursite no ombro, o que provocava dor ao levantar o braço. Assim, quando chegava da rua, pedia à esposa que tirasse a camisa dele. Ato contínuo, levantava o braço e ela carinhosamente tirava a blusa dele, sob a zoeira geral de quem estivesse em casa.
A principal conquista de Beto e Rozilene no campo material foi a construção da casa própria. O imóvel pensado para atender as demandas de toda a família, dando mais conforto a cada um, acabou ficando do jeito que eles sonharam. De alguma maneira, a residência da família Viana erguida no mesmo lote onde Roberto crescera, foi se transformando em uma referência no pequeno bairro de Ricardo Albuquerque, onde todo mundo se conhece.
A razão disso era o jeito carismático, comunicativo, prestativo e despachado de Roberto que ao longo da vida foi tecendo uma rede de amizades. É possível que o maior ensinamento que dona Eunice tenha dado ao filho foi o de que cultivar amizades era sempre muito importante. Ele escutou por muitas vezes o ditado repetido pela mãe de que “quem tem amigo não morre pagão”.
Na convivência comunitária, Roberto cresceu ajudando pessoas e fazendo amizades. Não media esforços para ajudar a quem precisasse em situações simples e corriqueiras ou até mesmo em momentos difíceis envolvendo a organização de velório e briga de casal.
Esta característica de Beto ficou ainda mais evidente com a aposentadoria. Ele precisou deixar de trabalhar bem cedo, devido à uma diabetes que o impedia de fazer grandes esforços físicos. A doença apareceu algum tempo depois da morte inesperada da filha mais velha, Joice.
Aposentado, aos poucos Roberto se transformou numa espécie de ouvidor na comunidade de Ricardo Albuquerque. A tal ponto que em alguns momentos Rozilene, mesmo sabendo que o esposo sempre fora assim, se queixava dizendo a ele que não dava para deixar de fazer as coisas dentro de casa para ajudar o pessoal da rua.
O certo é que “no boca a boca ele ia ajudando”. Conseguia cesta básica para quem estivesse em dificuldade, orientava como era necessário agir para tirar documentos, falava com políticos e outros representantes do serviço público pedindo apoio para causas.
Muita gente não sabia como Roberto conseguia saber sobre tantos assuntos. O fato é que ele era muito curioso e tinha uma memória invejável, capaz de guardar nome de pessoas, o passo a passo de como fazer alguma coisa. Com o auxílio dos óculos para driblar seus problemas de visão, se ele ouvia uma notícia no rádio ou na televisão que fosse de seu interesse, ia logo para a internet buscar mais informações. Se conhecia uma pessoa, pedia o telefone já pensando que uma hora poderia ser útil ter o contato para resolver alguma questão pessoal, familiar ou de alguém que o procurasse. E quando isso acontecia, ele não tinha a menor vergonha de acionar as pessoas.
Foi assim que Beto virou referência para muita gente sendo cada vez mais solicitado. Na memória, ia construindo uma teia de informações e contatos possíveis que, com uma facilidade enorme, conseguia se lembrar. E numa agilidade incomum as questões logo estavam resolvidas. Dizendo de outra maneira, Roberto considerava que a informação era algo precioso pois apontava caminhos e dificultava que ele, algum familiar, amigo ou vizinho fossem enrolados por alguém.
Esta realidade saltou aos olhos da família quando do seu falecimento. Logo que a notícia chegou, muitos dos que foram ajudados por ele logo se prontificaram a desembaraçar documentos, agilizar o sepultamento e dar apoio aos familiares.
Roberto segue vivo no jeito prestativo e um pouco teimoso de Samuel; na prontidão para o trabalho e no gosto por contar casos da vida alheia de Thalles; na tendência carismática, falante e engraçada de Thais; na casa construída que abriga Rozilene e no comum do cotidiano do bairro Ricardo Albuquerque.
Roberto nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 56 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Roberto, Thais Santana Lopes Viana. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 21 de dezembro de 2021.