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Roque José Ferreira

1955 - 2020

Antes mesmo de nascer, a luta e a ferrovia já estavam em sua vida.

A primeira, de tantas e merecidas homenagens feitas a Roque, é da esposa Tatiana:

Após três dias de trabalho de parto, aos 15 dias do mês de maio de 1955, nasceu Roque José Ferreira. Aparentemente estava bem no ventre, pois saiu apenas a fórceps. Sua vida toda foi assim: muita determinação e luta.

Nasceu em Birigui, mas poderia ter nascido em qualquer cidade onde corressem os trilhos da extinta RFFSA, pois seu pai era ferroviário e, pelas funções que exercia, era sempre transferido. O certo é que, antes mesmo de nascer, a ferrovia já estava em sua vida.

Se havia algo de que se orgulhou a vida toda, foi de pertencer à categoria ferroviária, da qual foi dirigente sindical de 1988 até o último dia de sua vida.

Um homem de muita coragem, determinação e luta. Sua frase diária era: "Jogue duro!" E esse "jogar duro" significava se preparar para todos os embates, estudar, aprender e dar o melhor de si em cada uma das ações da vida. Roque fazia o que pregava.

Jogou duro contra o racismo e contra a exploração de classes; sempre estudando, aprendendo e ensinando com revolucionária paciência os filhos naturais e os milhares que a militância política lhe rendeu.

Foi fundador do Movimento Negro Unificado e do Partido dos Trabalhadores, sendo eleito duas vezes vereador na cidade de Bauru. Desfiliou-se do PT e, junto com sua organização política, a Esquerda Marxista, migrou para o PSOL. Era um ser político, mas ia muito além disso.

Um homem honrado, educado ao extremo e dotado de enorme delicadeza no trato ao próximo. Era homem de casa; lá, com os filhos e a companheira, estava o seu melhor. Ouvia mais do que falava; e quando o fazia, era de forma suave e precisa. Suas histórias eram sempre recheadas de exemplos e ensinamentos. Foi pai extremamente amoroso e parceiro. Mesmo quando discordava de uma decisão ou outra, sempre orientava, apresentando todas as opções e destacando a que parecia ser melhor.

Amou intensamente os filhos Michelle, Vinicius, Dandara e Tales; tinha paixão pelos netos Julia e Arthur, e fez sempre o melhor para cada um.

Jogou duro, da forma mais suave possível. Colocou muitos tijolos no mundo e sua luta não se encerra com certeza não se encerra agora. Roque Ferreira seguirá nos trilhos da vida e da história, pois é maior que sua própria existência.



O texto a seguir é uma adaptação da homenagem escrita por Alan Woods, amigo de Roque, para a Revista Esquerda Marxista:

O camarada Roque Ferreira foi um veterano comunista, dirigente operário e dirigente da seção brasileira da CMI (Corrente Marxista Internacional). Ferroviário e importante sindicalista com longa trajetória de luta pela causa da classe trabalhadora, para mim, o camarada Roque representava o melhor tipo de quadro proletário.

Um homem totalmente dedicado à causa da classe trabalhadora e da revolução socialista, ele também mostrou um grande interesse na teoria e nas ideias marxistas. Essa é sempre a melhor combinação para o nosso movimento.

Conheci Roque quando fui ao Brasil, logo depois que os camaradas da Esquerda Marxista decidiram entrar para a CMI. Percebi, imediatamente, que ele estava muito entusiasmado com isso. Não foi por acaso, porque Roque era um internacionalista até a medula dos ossos.

Roque era um homem bonito. Sua barba e cabelos brancos davam-lhe um ar de dignidade tranquila. Era extremamente inteligente, mas um homem de poucas palavras. Nas muitas conversas que tive com companheiros no Brasil, percebi que Roque estava sempre presente, ouvindo atentamente cada palavra.

Ele falava raramente, mas quando falava, suas palavras eram sempre cheias de sabedoria proletária e de bom senso. Isso deu a ele uma autoridade enorme aos olhos de todos os camaradas.

Em Hamlet, de Shakespeare, Apolônio aconselha seu filho: "Dê a cada homem o teu ouvido, mas a poucos a tua voz". É um conselho excelente. Roque aprendeu a arte de ouvir – uma arte muito importante e que ele dominou completamente. Desejo que cada camarada siga seu exemplo!

Às vezes vejo como os camaradas mais jovens e inexperientes estão ansiosos para mostrar como são inteligentes falando muito. Isso nunca me impressionou – na verdade, muito pelo contrário. Não é muito difícil repetir esta ou aquela ideia que se tira dos livros, sem necessariamente entender o que elas realmente significam.

Pessoas sérias levam as ideias a sério. E o camarada Roque foi um dos revolucionários mais sérios que conheci. É por isso que ele nunca tentou criar uma impressão superficial de erudição falando muito.

Quando digo que ele falava com seriedade, isso não significa que não fosse bem-humorado. De fato, muito pelo contrário.

Ele possuía um bom senso de humor, ao contrário dos sectários que imaginam que os revolucionários devem sempre parecer como se acabassem de engolir um litro de vinagre.

Quando alguém falava alguma bobagem, ele nunca reagia sarcasticamente, apenas sorria baixinho para si mesmo. Embora fosse uma pessoa forte e determinada, também era um personagem muito gentil, totalmente destituído de qualquer espírito estreito de rancor. É por isso que foi amado não só como um camarada, mas como um amigo e um ser humano genuíno.

Durante sua vida, Roque travou muitas batalhas. Algumas, ele ganhou; outras, perdeu. Tragicamente, não conseguiu vencer sua batalha final – a batalha pela própria vida.

A morte de Roque foi um golpe cruel para seus companheiros e amigos, tanto no Brasil quanto no exterior. Em nome do Secretariado Internacional e de todos os camaradas da CMI, enviamos as nossas mais sinceras condolências, simpatia e solidariedade aos seus familiares, camaradas e amigos.

Camarada Roque, nunca te esqueceremos!

A luta continua!

Viva o socialismo internacional!

Trabalhadores do mundo, uni-vos!



O texto a seguir é uma adaptação da homenagem feita pela amiga Bibiana Garrido:

Roque partiu para o plano espiritual e nos deixou uma imensa dor, saudade e admiração ainda maiores. Entrou na conta das vidas perdidas por conta da Covid-19 e do descaso na Saúde.

Nas manifestações, a gente sempre esperava a fala dele. Sua análise precisa e cirúrgica do momento vivido pela classe trabalhadora e posto em perspectiva diante do curso da História.

O socialismo, as crises escancaradas em Bauru, no Brasil e no mundo pelo capital. Um homem inteligentíssimo que tinha a paciência de ensinar pra gente. Foi muita coisa que aprendi sobre a luta e aprendo ainda com o Roque e a Tatiana Calmon Karnaval, sua esposa.

Em uma conversa por aplicativo de mensagens, ele me convidou para uma festa e teve o cuidado de dizer que teria opção pra mim, que sou vegana e, por isso, igual a sua filha Dandara Tierra, que também não come carne. Roque nunca fez piadinhas comigo sobre isso.

Depois, quando começamos a campanha de financiamento coletivo do jornal, ele foi um dos primeiros a estender a mão. Já antes, três anos antes, participava da votação que fizemos na internet para escolher o nome do Jornal Dois.

Subsidiou-nos com as histórias e as tretas de Bauru, sempre dava aquela dica de pauta, assim como a Tati, e o mais legal: compartilhava tudo que a gente postava.

Quantos foram os posts que o Roque compartilhou apoiando nosso trabalho, citando a mim e o Lucas, dando força pra gente continuar?! Foram muitos.

O Roque foi uma das pessoas imprescindíveis pra que nos tornássemos o que somos hoje. Foi nosso professor e nosso amigo.

Sabendo que ele havia sido internado, reparei que continuava mandando seus conteúdos sobre a pandemia em Bauru e, então, respondi um dia, desejando melhoras.

Na lembrança viva da insistência incansável do Roque, repito aqui sua mensagem de Ano Novo, antes de tudo o que estava por vir:

"Que venha 2020.

Estamos com muita disposição e entusiasmo para continuar nossa luta em busca de um mundo justo, fraterno, solidário e alegre para todos nós e para as futuras gerações.

Dirão os pessimistas: isso é um sonho. Sim, é um sonho. Permitimo-nos sonhar e lutar pelos nossos sonhos, como disse Lenin: 'É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles.'

Sim, vamos eu e você acreditar que podemos coletivamente realizar nossos sonhos."

Na nossa sala, agora tem o retrato dele na parede, pra nunca nos deixar esquecer disso.



O texto a seguir é uma adaptação da homenagem feita pelo amigo Matheus Versati:

O companheiro Roque não está mais fisicamente entre nós.

Ainda me pego refletindo sobre suas lições, suas palavras simples, mas que passavam tanto significado... Se eu não tivesse dado ouvido para ele, poderia ter uma vida muito mais simples hoje, sem estresses. Mas agora não tem volta. Ele alimentou e orientou minha consciência com esperança em uma sociedade melhor, marcou em minha alma que, só organizados e mobilizados, podemos lutar para mudar nosso meio.

Entre muitas de suas lições, houve uma noite em que estávamos na CUT (Central Única dos Trabalhadores), debatendo alguma coisa que não me lembro agora, e ele veio ao meu encontro no corredor para conversar. Então, ele não perdeu muito tempo para chamar minha atenção por eu querer enfrentar os adversários sozinho e ficar acelerando situações que me colocavam em risco. Para me passar sua lição, contou-me uma história, que foi mais ou menos assim:

"Estávamos em São Paulo em marcha junto aos trabalhadores contra os ataques do governo (não me lembro contra o que, nem contra qual governo), e havia vários daqueles policiais gigantes, com joelheiras, capacete, ombreira, uns 'Robocops'; se um cara daqueles viesse para cima de você e te desse um chute na bunda, te quebrava todo! Mas quando foi necessário que as massas agissem, nós avançamos para cima; quando eles veem a massa esmagadora de professores, ficam mais brancos como fantasmas, e correm dos professores. O que você tem que entender é que, sozinhos, nós não fazemos nada, não podemos subestimar a classe trabalhadora, temos que nos mobilizar, nos organizar e lutar. Todos juntos. Essas ações isoladas só afastam a classe trabalhadora. A classe trabalhadora não precisa de heróis."

Tenho cada uma dessas palavras cravada em meus ideais até hoje, e as repito e ensino a todos que posso.

Obrigado, Roque, por essa e muitas outras lições.



O texto a seguir é uma adaptação da homenagem feita pelo amigo Arthur Monteiro Junior:

Roque partiu, pegou um trem fora do combinado e seguiu, rumo ao infinito, em busca de outros mundos, prosseguindo na sua missão histórica de denunciar as mazelas do capitalismo e da necessidade da Revolução.

Foram quase quatro décadas de amizade, histórias em comum, algumas aventuras e muita luta, sempre na mesma trincheira, sempre ao lado da classe trabalhadora.

Maior liderança popular surgida em Bauru, trouxe sempre consigo a coragem, a dignidade e a coerência. Os dois mandatos que o povo de Bauru lhe outorgou jamais transformaram o companheiro em alguém arrogante ou que sucumbisse aos agrados da burguesia. Ao contrário, abriu a porta do seu gabinete e da Câmara Municipal aos anseios populares, contribuindo enormemente para muitas lutas.

Sem dúvida, Roque foi um daqueles imprescindíveis de quem falava Brecht em uma de suas poesias; figura única, insubstituível.

A dor da sua partida faz-se forte e cruel, o desencanto com a realidade, que já era grande, torna-se quase insuportável. É como se, como nas palavras de um amigo, perdêssemos nosso Comandante em meio a uma batalha. Ainda atordoados, olhamos perdidos para o horizonte, sem rumo.

Roque, nossa estrela fulgurante, integra a constelação dos grandes revolucionários que sempre nos guiará. E chegará o momento que enxugaremos nossas lágrimas, espantaremos a poeira e, mesmo ainda alquebrados com a derrota que o destino nos impôs, voltaremos a levantar nosso punho cerrado, a gritar as nossas palavras de ordem e a honrar o exemplo de vida do companheiro Roque, colocando todas as nossas energias na construção de uma nova sociedade.

Companheiro Roque, presente! Agora e sempre!

Roque nasceu em Birigui (SP) e faleceu em Bauru (SP), aos 65 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela esposa e pelos amigos de Roque, Tatiana Virgínia Calmon Borges, Alan Woods, Bibiana Garrido, Matheus Versati e Arthur Monteiro Junior. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Daniel Schulze e moderado por Lígia Franzin em 29 de novembro de 2020.