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Saulo Boer Taets

1977 - 2020

O ronco inconfundível do motor de sua Caravan avisava o amigo, Diego, que Saulo já estava na área.

De Muçarela a Mastroianni, os apelidos que Saulo ganhava dos amigos não conheciam os limites da criatividade e cada um deles contava uma história diferente. Se Saulo viajasse com alguém – algo que ele fazia com frequência, pois era apaixonado por conhecer o mundo -, era certeza de que voltaria com um apelido novo; e ele recebia cada um deles com muita alegria e bom humor.

O melhor amigo Diego, no entanto, o chamava pelo nome. Os dois cresceram juntos como vizinhos de rua no bairro do Jaçanã, na Zona Norte de São Paulo; e, no meio de todas as brincadeiras - jogando bola, andando de bicicleta e o que mais a imaginação permitisse -, uma irmandade incontestável nasceu. Os dois eram verdadeiros irmãos de mães diferentes.

Na adolescência, Saulo foi o primeiro dentre os amigos a tirar a habilitação para dirigir e tornou-se o piloto das viagens de destino incerto. Mais tarde, o gosto pela direção levou Saulo a conhecer sua primeira paixão: sua Chevrolet Caravan. Ele havia comprado o carro do pai e colocou um escapamento bem barulhento para dar um toque especial ao veículo; o acessório - que fazia o motor da Caravan ter o ronco de um carro de corrida -, acabou funcionando como um aviso para Diego; ele sabia quando Saulo estava entrando na rua só pelo som do carro, e se Diego estivesse na porta de casa, Saulo parava o carro e os dois ficavam conversando por horas. Às vezes, inclusive, Saulo usava a garagem do amigo como casa para o seu xodó, a Caravan.

Ele trabalhava restaurando máquinas de lavar e continuou morando no Jaçanã na vida adulta. Quando Diego se mudou para Mairiporã, um município bem próximo, Saulo foi o único a visitar a nova casa do amigo. Eles aproveitavam cada momento, fosse fazendo churrascos, descendo a serra para sentir o frescor da Praia Grande, conversando sobre a infância e até planejando as reformas a serem feitas na nova casa de Diego. Infelizmente, quando as reformas acabaram, a pandemia iniciou e os amigos não puderam se reunir no novo lar para contemplarem as mudanças feitas, que contavam com as ideias genuínas de Saulo.

E de todas as paixões dele, havia uma que era mais que especial: sua esposa, Camila. Os dois eram grandes companheiros e tinham uma relação de muito carinho, sempre estavam juntos.

Ouvir música era uma das coisas que Saulo mais gostava e quando surgiram os CDs, os dois grandes amigos compartilhavam os discos para gravar em fita K7. Havia situações em que o Bolinha, outro amigo da infância, se juntava à dupla para completar a festa. Quando o trio estava reunido, era preciso tomar cuidado com os líquidos, pois logo um deles falava algo tão engraçado que era impossível não gargalhar e frequentemente acabavam cuspindo o que estivessem bebendo. E, se a ocasião fosse mais radical, Saulo também marcava presença e levava sua bicicleta; certa vez ele foi fazer uma trilha e acabou caindo e ficando machucado, mas não se abalou e continuou a pedalar.

Saulo era assim: uma força da natureza, pronto para enfrentar os desafios da vida e seguir em frente. Sua partida é sentida por incontáveis pessoas, mas o legado de força, coragem e alegria que ele deixa é eterno. Seu sorriso jamais será esquecido.

Saulo nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 42 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo amigo-irmão de Saulo, Diego Lopes Grilli. Este tributo foi apurado por Eleonora Marques e Talita Camargos, editado por Camilla Campos Trovatti, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 27 de julho de 2021.