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Sérgio da Cunha

1954 - 2020

Em suas histórias, Nataly era a princesa, Cristina era a rainha, e ele, um súdito irremediavelmente apaixonado.

Esta é uma carta aberta escrita com alma e coração por Nataly ao seu amado pai, Sérgio:

Sérgio, Sr. Sérgio, Serjão ou irmão Sérgio, foi um homem que marcou e impactou a vida de muitas pessoas que tiveram a grande oportunidade de conviver com ele.

Meu pai era um ser humano incrível ─ embora muitas vezes demonstrasse ser um homem fechado e de poucas palavras ─, por trás do escudo havia um coração imenso, bondoso e muito amoroso, prova disso é que sempre zelou pelo bem-estar da linda família que ele tanto amou e pela qual foi muito amado.

Sérgio soube aproveitar a vida com a maior intensidade possível; viajou, curtiu festas, tocou em escola de samba, acampou, bebeu, adorava se reunir com os amigos para contar histórias e foi muito namorador.

Ainda jovem, apaixonou-se pelo trabalho voluntário que fazia no bairro; vestia-se de Papai Noel e, junto com os amigos, arrecadava brinquedos para ajudar as crianças menos favorecidas da região. Ao longo dos anos, foi conquistando cada vez mais pessoas para trabalhar com ele no projeto.

No ano de 1997, na véspera de Natal, enquanto organizava os brinquedos para doação, juntamente com minha mãe, Cristina, receberam uma ligação do fórum, informando que a espera de dois anos para adotarem uma criança havia terminado. Foi assim que eu, Nataly, renasci no dia em que fui adotada por esse casal que abriu mão de uma vida de "jovens solteiros" para se dedicarem unicamente a amar e cuidar de uma criança recém-nascida que receberam como filha legítima.

Foram vinte e dois anos de convívio, durante os quais enfrentamos altos e baixos. Passamos por dificuldades financeiras, principalmente por conta das minhas incontáveis internações devido à saúde muito frágil. Meu pai sempre estava lá, dando total suporte para minha mãe.

Recordo-me que quando minha mãe trabalhava, quem cuidava de mim era ele: mandava pro banho, alimentava, ajudava a estudar e participava das reuniões escolares sempre que minha mãe não tinha disponibilidade de ir. E mesmo quando ela podia ir, iam os dois.

Meu pai proporcionou para mim a família que ele gostaria de ter tido.
Infelizmente, ainda muito jovem, sua mãe deixou os quatro filhos para trás e seguiu rumo a uma vida de solteira com um novo companheiro. As crianças ficaram com o ex-marido que era caminhoneiro e viajava o tempo todo a trabalho. Anos depois, meu avô faleceu em decorrência de um câncer, os irmãos acabaram cuidando uns dos outros como puderam.

Durante toda minha criação, o sonho do meu pai era me ver formada, casada e com filhos. Felizmente, o primeiro de seus sonhos se realizou em janeiro de 2019, numa linda e emocionante cerimônia de formatura; os demais: ver meu casamento e meus filhos, ele ainda verá ─ caso seja esse o meu desejo algum dia ─, só que verá tudo isso lá do Céu!

Lembro-me que quando minha mãe era cuidadora de crianças, meu pai se dispôs a fazer um miniparquinho em nosso quintal. Ganhou um gira-gira e, com uma cadeira de ferro que tínhamos em casa, fez um balanço bem bacana e seguro para que pudéssemos brincar. Ainda nessa época, numa tarde qualquer, ajudou minha mãe a fazer um bolo todo decorado e reuniu todos os brinquedos da casa para fazer “uma festa de aniversário para a Minnie”, uma pelúcia de um dos símbolos da Disney que eu tinha em casa.

Quando eu tinha em torno dos meus 5 anos, meu pai sempre deitava comigo e com minha mãe para contar histórias sobre princesas que ele inventava na hora. Eu sempre era a princesa, morava em um lindo castelo e namorava um príncipe muito bonito, mas durante as narrativas, eu precisava pedir permissão em tudo para minha mãe. Inocente e sem perceber que ele piscava para ela nunca dar as tais permissões, eu ficava muito brava; afinal, o desfecho da história nunca era como eu esperava. Essas narrativas foram marcantes e rendem memórias incríveis até hoje, quando me pego relembrando essas tardes.

Desde que meu pai partiu, já passei pelo 1º aniversário dele e pelo 1º Dia dos Pais sem ele. São datas como essas que fazem com que meu coração fique em pedaços, mas a única certeza que tenho agora é que ele está descansando, assim como o médico nos disse na tarde daquele sábado.

Finalizo aqui este memorial dizendo que, logo que ele me pegou nos braços pela primeira vez, naquele 24 de dezembro de 1997, prometeu que não me deixaria enquanto eu não dissesse a ele que me orgulhava dele. Eu disse isso incontáveis vezes, pois ele fez um ótimo trabalho na minha criação. Externo aqui, mais uma vez, para registrar que tenho orgulho do homem incrível que meu pai foi e sinto-me honrada em ter dado a oportunidade dele viver e realizar tantos sonhos comigo.

E como diz a letra da música Unforgettable (releitura: Natalie Cole com Nat King Cole):

"Ooh inesquecível (inesquecível)
Em todos os sentidos (em todos os sentidos)
E sempre (e sempre)
Isso é como você ficará (isso é como você ficará)
Isso é porque, meu bem, é incrível
Que alguém tão inesquecível
Pense que eu também seja inesquecível."

Tenha certeza que você será inesquecível na minha vida, meu pai!

Te amo!!!

Sérgio nasceu em São Paulo (SP) e faleceu em São Paulo (SP), aos 65 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Sérgio, Nataly da Cunha. Este tributo foi apurado por Ana Macarini, editado por Ana Macarini, revisado por Ligia Franzin e moderado por Rayane Urani em 3 de fevereiro de 2021.