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Solange de Oliveira Machado

1947 - 2021

Conversava com todo mundo na feira, fazia amizade com colegas de barraca e fregueses.

Solange sempre gostou de falar. Gostava tanto de se comunicar com as pessoas à sua volta que nada mais justo que suas próprias palavras aparecerem registradas nesta homenagem: "Filha, quando a mãe morrer tu vai sentir falta. Mas tu viu o que falaram sobre mim no dia do meu aniversário? 'É essa guerreira, é quem anima a festa. É animada, faz a gente dar gargalhada.' Todo mundo lá na festa gostou de mim. Ah, eu tenho autoestima. É assim, eu vivo assim, sou alegre. Então eu vivo bem, né? E viverei até a hora que Deus quiser", diz Solange em uma mensagem gravada em áudio para a filha Valéria.

"Minha mãezinha foi uma guerreira. Sempre lutou muito pela vida e sobrevivência dos filhos. Deixou um legado de força e amor", conta Valéria, filha mais velha de Solange.

Leonina, era mesmo uma leoa quando se tratava de seus filhos. Por eles trabalhava muito, sem sucumbir aos sofrimentos advindos do relacionamentos conjugais.

Dona de uma autoestima gigante, ela fazia como diz a música: levantava, sacudia a poeira e dava a volta por cima. Ainda que fossem necessárias muitas voltas por cima, como de fato foram.

Solange era a filha mais velha. Tinha só tinha uma irmã, e perdeu a mãe aos 29 anos. Aos 17 anos, começou a trabalhar como escriturária em um cartório. Naquela época, os livros de registros eram feitos a mão, e Solange se orgulhava de sua letra, que era muito bonita. Foi nesse trabalho que conheceu seu primeiro marido. Ele era motorista de ônibus, e um dos caminhos de seu itinerário era a rua do cartório. Ele passava em frente com o ônibus e ficava de paquera com a moça dos livros. Solange tinha 19 anos quando se casaram. Ficaram juntos por 16 anos, até o falecimento dele. Dessa união nasceram duas filhas, e uma delas é Valéria.

No segundo casamento, ela teve dois meninos. O mais velho faleceu, e Solange sofreu para sempre a falta dele. O segundo menino nasceu quando Solange tinha 50 anos. Carregava dentro de si uma alma generosa, e cuidou ainda de um irmão do marido, a quem deu abrigo. Esse cunhado faleceu também de Covid-19.

"Sempre tinha uma palavra de incentivo para todo mundo, vivia rindo de tudo e de si mesma. Muito falante, fazia amizade por onde passava, era muito amada por todos os moradores do bairro em que vivia e pela família. E por onde andava sempre achava que estava sendo paquerada", diz Valéria com ternura sobre a amada mãe.

Solange foi feirante no Rio de Janeiro por muitos anos, junto com o segundo marido. Era muito popular e amava trabalhar na feira. Só parou mesmo quando a idade chegou.

"Uma história engraçada da época de feira - todo dia tinha uma -, foi que a uma distância de cinco barracas da barraca de minha mãe tinha uma de brinquedos. Era Dia das Crianças. A vendedora a chamou do nada, apontou para um brinquedo ao mesmo tempo em que apontou para um menino de 10 anos. Fez sinal com o polegar para Dona Solange, mostrando o menino, e mamãe respondeu com o mesmo sinal. No final da feira, a vendedora veio cobrar o brinquedo que o menino tinha levado - o mais caro de todos. Ele tinha dito para a moça que era afilhado da mamãe!"

"Assim como aconteceu nesse caso, ela caía em várias pegadinhas, porque confiava nas pessoas. No fim, todo mundo ria das situações maluquinhas em que Dona Solange, por sua ingenuidade, se envolvia", conta com orgulho Valéria.

Solange lutava, mas também dançava e cantava para lidar com as armadilhas da vida. Se era para lutar, então que fosse com alegria, otimismo e muito bem maquiada. Isso mesmo: ela passava base no rosto até para ir à padaria comprar pão. Claro! Porque vai que o Benito de Paula cruzasse seu caminho! Ela era muito fã dele. Mandava áudios para a família cantarolando musicas do cantor e compositor. Também amava um karaokê.

Solange ficava feliz com coisas simples, como a casa arrumada e o fogão brilhando, além de pagar suas contas em dia. Transmitiu o amor por essas pequenas felicidades às filhas.

Valéria diz que a mãe "tinha personalidade forte, era teimosa. Pedia conselho, mas no fim só fazia as coisas como ela mesma achava que devia ser, mesmo que o resultado não fosse tão a seu favor. A vontade dela tinha que permanecer".

Lutava por justiça social, militava mesmo, fosse dentro do ônibus ou no mercado. "Participava de manifestações, e nós, os filhos, ficávamos com muito medo de acontecer algo com ela, como levar um tiro de bala de borracha, mas ela não se abalava. Estava lúcida e tomava as próprias decisões", conta Valéria.

A filha se orgulha desse legado da mãe: simplicidade e honestidade, manter-se forte e otimista mesmo diante das situações mais exigentes da vida, não desistir nunca. "Só a presença de Solange já era uma revolução."

Valéria termina esta homenagem lembrando que "a mãe tinha muita vontade de viver e viveu. Sonhava em viver até os 100 anos. Não chegou a tanto, mas os anos que viveu foram saboreados e curtidos com atitude positiva".

As palavras do poeta Pablo Neruda talvez representem com excelência merecida a jornada incrível dessa mulher mais incrível ainda: "Confesso que vivi".

Solange nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 73 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Solange, Valéria. Este tributo foi apurado por Marina Gabriely, editado por Cristina Marcondes, revisado por Fernanda Ravagnani e moderado por Rayane Urani em 18 de outubro de 2021.