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Valdecir de Souza Bernardo

1952 - 2020

Generoso com os próximos e protetor com seus irmãos, fazia o que podia para garantir a comida na mesa.

Valdecir entendeu muito cedo o significado da palavra “comunidade”.

Sua família foi uma das primeiras a morar na recém-inaugurada Cidade de Deus, na década de 1960, quando o bairro se desmembrava de Jacarepaguá. Não havia acesso a energia elétrica, água ou esgoto. Nem sinal de mercados e outros estabelecimentos por perto. A situação se agravava quando faltava comida para pôr na mesa.

Inconformado com a dura realidade, Valdecir ia em busca de opções. Descobriu um caminho para a Colônia Juliano Moreira, um hospital psiquiátrico onde havia muitas mangas. No início, voltava para casa com frutas. Mais tarde, sujeito muito carismático, fez amizade com os funcionários da cozinha. Desde então, os restos das refeições dos pacientes, que antes iam para o lixo, passaram a alimentar uma comunidade. Todos os dias, Valdecir pegava uma lata de óleo vazia de vinte litros, e ia ao hospital. De lá, trazia comida para a família e os vizinhos.

Também se virava caçando andorinhas e rãs. Fazia todo o processo de limpeza e preparo das carnes. Depois, cozinhava e servia com farofa, distribuindo pratos pelo bairro.

Aos 16 anos, conseguiu um emprego como entregador de quentinhas. A condução era cara, então dormia no trabalho para economizar. No início do mês, voltava para casa cheio de compras e abastecia os armários com mantimentos. “Era uma alegria, porque a gente passava muita necessidade. Nós não tínhamos pai, nossa mãe era mãe solteira”, observa a irmã mais nova, Célia.

Para a caçula, Valdecir também era um pai. “Meu irmão perdeu a juventude trabalhando e lutando para nos sustentar”. Célia não esquece de quando contraiu caxumba, ainda criança. Como a mãe não podia faltar ao trabalho, coube a Valdecir levá-la ao médico. A história ficou marcada pelo gesto de carinho do irmão, que desceu e subiu ladeira com ela nas costas.

Valdecir também aprontou as suas. Quando era criança, ficou dias sem aparecer em casa. Desesperada, Francisca, sua mãe, foi à polícia buscar ajuda. Após muita procura, descobriram que o menino estava morando com uma família em Copacabana, na Zona Sul da cidade. Valdecir encontrou um casal na rua e disse a eles que seus pais haviam sido assassinados e, portanto, não tinha com quem morar. A segunda família não queria devolvê-lo. Francisca precisou ir com a polícia e os documentos para levar o filho para casa. O episódio ficou marcado e é sempre lembrado pela família.

A propósito, Valdecir adorava contar suas histórias de vida. Não dá para esquecer que ele deu aula de luta a um personagem que ficou conhecido após o lançamento do filme “Cidade de Deus”. Quando era jovem, os filmes de Bruce Lee estavam em alta. Valdecir se inspirou no lutador para aprender karatê. Tinha muitos livros e até aprendeu a fazer uma das armas do ator. Improvisou dois cabos de vassoura com uma corrente no meio e com isso aprendeu os golpes.

A molecada do bairro ficou impressionada com a destreza de Valdecir e ele ganhou “seguidores”. Como forma de agradar os fãs, passou a dar aulas de luta. Sempre sem cobrar nada. Um de seus alunos foi Mané Galinha. Criança à época, ainda não havia se envolvido com o mundo do crime.

Mané Galinha foi assassinado, na década de 1970, na frente de seus familiares. O fato inspirou uma das cenas de Cidade de Deus. As histórias de Valdecir e de Mané Galinha só se cruzam mesmo por conta das aulas de luta. A vida de Valdecir, distante da criminalidade, não virou filme, mas é digna de um.

Valdecir nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 68 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido irmã de Valdecir, Celia Regina de Souza Mercedes. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Larissa Paludo, revisado por Daniel Schulze e moderado por Rayane Urani em 18 de agosto de 2020.