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Valdevino Barreira

1948 - 2020

Contrariando as estatísticas e o preconceito, conseguiu vencer: se casou, teve filhos, netos, bisnetos e construiu seu patrimônio.

A palavra onirismo vem do grego "oneiros", que significa sonho e se refere a um estado mental que costuma ocorrer em síndromes confusionais. Esse estado mental é constituído por um conjunto de alucinações visuais interagindo entre si e com o "sonhador" enquanto ele está acordado. "Esse estado onírico talvez seja a mais real e fidedigna sensação que eu e meus familiares estejamos sentindo", diz o filho mais velho de Valdevino, Cléber.

Valdevino era filho de Marcelina Barreira, uma mãe solo. Deixou alguns ensinamentos e legados por onde passou e com quem conviveu. Foi um homem nordestino, negro, desprovido de formação e condições financeiras. Em 1962, aos 14 anos, saiu de sua terra quilombola do vilarejo de Santa Inês, onde nasceu e foi criado, para ganhar o mundo. Já possuía uma visão ambiciosa, mesmo não sabendo o que encontraria pela frente.

Foi morar com um parente mais velho na cidade grande, onde passou por humilhações e desprezos. A esposa desse parente amenizava seus sofrimentos com palavras de estímulos, o que o fez perceber que deveria ir além.

Em 1966, alistou-se no exército brasileiro, mais para comer e ter onde dormir do que por convicções patrióticas. Trabalhou na fronteira do país, abrindo estradas na região amazônica. Tempos difíceis, mas seguiu. Trabalhou no garimpo na região norte do país. Se infectou com a malária, que, respeitando as devidas proporções, foi o coronavírus dos anos 70, nos garimpos clandestinos do norte e nordeste do Brasil.

No ano de 1974 seguiu para São Paulo, região periférica da zona sul, no bairro do Ubirajara. Em tupi, übürai'yara quer dizer literalmente "senhor da lança, senhor da vara". "Fiz essa referência, pois ele sempre dizia: 'Não se contente com o peixe, vá pescar o seu'. Coincidências, né?", comenta Cléber.

Em 1975, fez amizade com a família Batista Santos, quando conheceu sua esposa, companheira de 45 anos. Contrariando as estatísticas e o preconceito, esse preto, de 72 anos, conseguiu vencer! Casou-se, criou seus três filhos e fez deles pessoas de bem. Teve nove netos, um bisneto, terminou o ensino médio e construiu seu patrimônio. Foi amigo de muitos e propagou o sobrenome Barreira, que ele tinha orgulho de carregar.

Valdevino tinha uma maneira peculiar de falar sobre racismo, discriminação e preconceito. "Ele dizia: 'filho, isso só existe se você der trela. Não precisa ficar pensando nisso, faça a sua parte e pronto'. Meu Deus, quantas discussões tive com ele a respeito disso. Dizia a ele que ele estava com uma 'venda', que devia abrir os olhos. Mas, seguia com o seu raciocínio firme: 'Não vou dar trela para isso e vou continuar a trabalhar'. Hoje enxergo, tardiamente, que foi uma maneira de 'sobrevivência' que ele adotou para seguir. E eu não tive a sensibilidade de perceber isso, quantas brigas tive com ele a respeito disso, à toa", conta o filho.

"Posso dizer que meu pai deixou como legado o seu nome. Ah, quanto bullying sofri no tempo de escola. Barro, Barrica, Barreirinha, Barrado, etc. Confesso que tinha até vergonha deste sobrenome. Certa vez, nos anos 80, nas séries iniciais, em uma pesquisa sobre etimologia nominal, uma professora mencionou que o meu sobrenome era 'indefinido', que muitos escravos e povos mestiços não possuíam títulos e históricos familiares registrados, se bem me lembro. Não entendi o que ela quis dizer na época, mas lembro-me claramente do desconforto que senti ao ouvir que eu não tinha uma origem, uma raiz. Contudo, deixo aqui uma das pesquisas que mais me deixa orgulhoso: 'No que diz respeito ao sobrenome Barreira, a origem se encontra no lugar de resistência do portador original (gostei disso!). Este sobrenome é encontrado na Galícia'."

Além de seu nome, Valdevino deixa muitos ensinamentos em forma de suas frases frequentes, como: “faça a sua parte”, “o que é seu é seu, o que é do outro é do outro”, “os mais velhos devem ser respeitados, independente se eles estiverem errados, eles são os mais velhos”, “tenha sempre uma reserva”, “tenho orgulho de ser nordestino e negro”, “veja sempre o lado bom das coisas”, “silencie, depois volte a conversar”, “seja responsável", entre outras. Seu último pedido, feito ao filho, foi para ele ficar atento à mãe e não deixar ela ir ao hospital. "Este pedido eu interpreto como um ensinamento de "cuide de seus pais", fala Cléber.

"Obrigado Barreira, Negão, Valdovisky, Vá, Pantera, Careca (esse ele não gostava muito), Palmeirense, Bandeirinha (vivia trocando de time) e o último que adotei para você, inspirado na minha Roschel, Lobisomem. Por isso coloquei a música "Mistérios da Meia-Noite" durante seu sepultamento, minha homenagem participar para você. Sei que, quando eu olhar para a lua cheia, você estará lá com os outros da matilha, uivando para nossa família. Pai, eu não consegui comprar uma caminhonete para você (um pedido que ele fez para mim quando eu ainda era uma criança), mas prometo que vou comprar uma e fazer aquela nossa tão sonhada viagem para o Maranhão. Tenho certeza que, de alguma maneira, você estará comigo! Foram 50 dias de luta, dor, distância e medo... muito medo. Porém, essas sensações chegaram ao seu fim e, infelizmente, meu pai desencarnou. A doença foi mais forte. Até mais, pai...", diz Cléber.

Valdevino nasceu em Santa Inês (MA) e faleceu em São Paulo (SP), aos 72 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pelo filho de Valdevino, Cléber Aparecido Batista Barreira. Este tributo foi apurado por Michelly Lelis, editado por Raiane Cardoso, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 3 de fevereiro de 2022.