1979 - 2021
Lutou incansavelmente pelos direitos da população transexual e travesti.
Mulher trans, Valeria era integrante da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e diretora do Instituto Nice, onde liderava ações voltadas à promoção da reinserção social e profissional e também da cidadania de transexuais, travestis, gays, lésbicas e bissexuais.
De forma bastante atuante, desenvolvia inúmeras ações e projetos ligados à causa LGBTQIA+ e destacou-se nacionalmente por ações que prestavam apoio e atendimento para meninas e mulheres trans, sobretudo na região de Caieiras, Francisco Morato, Franco da Rocha, Mairiporã e Cajamar, na Grande São Paulo. Ela também militava no combate à intolerância religiosa.
Val ministrava palestras, participava de rodas de conversa, auxiliava na retificação de nome e gênero, encaminhava para acompanhamento psicológico, coordenava a doação de cestas básicas e ainda era focada em promover o resgate de vítimas de exploração sexual e do trabalho escravo.
Juntamente com o MPF (Ministério Público Federal), atuou em operações como Cinderela e Fada Madrinha nas cidades de Franca e Ribeirão Preto, quando foram investigadas quadrilhas que comandavam o tráfico estadual e internacional de travestis. As operações para desarticular os dois esquemas mencionados libertaram ao todo 73 vítimas submetidas a trabalho análogo à escravidão.
A presença de Valeria junto ao MPF durante as operações foi fundamental para que as meninas resgatadas se sentissem representadas e pudessem ter maior identificação para receberem apoio e acolhimento em relação às retificações de nome e gênero, retirada de próteses com infecções e outras questões necessárias para que retomassem a dignidade e a saúde física e mental.
Foi responsável direta por criar oportunidades e pela transformação de vida e ressocialização de pessoas trans e travestis em situação de vulnerabilidade social que conviviam diariamente com o descaso e até mesmo com a violência. Promoveu o empoderamento e o resgate da cidadania e foi a primeira transexual a conseguir oficializar candidatura à Câmara Municipal de São Paulo dentro da cota de 30% de candidaturas femininas estabelecida pela legislação eleitoral.
A população trans ─ historicamente excluída da sociedade, da escola, da família e consequentemente levada à informalidade ─, encontrou em Valeria e nos projetos em que era fortemente engajada, uma forma de ressignificar sua existência e ampliar seus horizontes com valorização de suas personalidades, inserção no mercado de trabalho e ocupação de espaços onde antes havia apenas o preconceito. Valeria conseguiu que tantos tivessem orgulho de sua condição e, com o seu apoio, conseguiram se qualificar e alcançar autonomia financeira e empoderamento para se tornarem também protagonistas na sociedade, ao contrário do que ocorre, via de regra, com tantos que não encontram esse apoio e recorrem à prostituição.
As desigualdades e adversidades que passam os mais vulneráveis eram o foco da luta diária de Valeria. Ela nunca esmoreceu e sua indignação não a deixava parar enquanto não houvesse colocado todos os esforços para que a população trans tivesse seus direitos preservados e garantidos de forma ampla e igualitária.
Valeria ficará nas lembranças de quem teve a honra e o prazer de conhecê-la como uma travesti que não descansava nunca. Atuando na linha de frente junto à população mais vulnerável, partiu jovem e levando consigo muitos planos.
A partida prematura de Valeria não representa apenas a perda de uma amiga, mãe ou irmã. Quem partiu foi uma guerreira que, trabalhando e ajudando a população, foi contaminada pelo novo coronavírus, uma lutadora que morreu pela militância.
A amiga de Valeria e coordenadora do Instituto Nice, Larissa Raniel, conta:
"Conheci Valeria Rodrigues no meu salão, ela estava falando sobre o trabalho que fazia em São Paulo. No mesmo momento já fiquei encantada e comentei que poderia somar meus esforços apresentando a ela pessoas-chave na cidade de Francisco Morato e foi assim que ela me acolheu com dedicação e enxergou em mim o que nem eu mesma poderia imaginar: ser uma militante.
Durante os anos que trabalhamos juntas, pude aprender muito com essa mãe e irmã que ela foi pra mim. Sempre me cobrou muito no trabalho e muitas vezes a gente até brigava, mas tudo isso fez parte do aprendizado incrível que Valeria me proporcionou.
Em um momento considerado histórico para a causa LGBTQIA+, que foi o resgate das vítimas de Ribeirão Preto, tive o prazer e a honra de estar ao lado dela representando o Instituto Nice. Foi um momento único!
Estivemos também em Brasília para uma conferência sobre trabalho análogo à escravidão e em Porto Alegre, onde participamos de um encontro anual de militantes trans, foram oportunidades maravilhosas em que pude ser introduzida e apresentada por ela para dar continuidade ao trabalho, pois ela sempre brincava muito com a fugacidade da vida. Ela falava: 'Larissa, acorda! Logo você vai ter que continuar o trabalho. Quando eu partir, você terá que continuar...' Nunca levei a sério essas conversas e não poderia imaginar que isso viesse a acontecer.
Hoje entendo todas as brigas que tivemos e todas as cobranças que ela fazia. Eram todas para que eu estivesse preparada para esse momento tão doloroso que foi sua partida. Ela deixou tudo pronto nossa última viagem, que foi muito intensa, brincamos muito e nos divertimos demais.
Valeria me tratava como filha, estava sempre cuidando de mim. Até sobre roupas, postura... ela sempre pegou muito no meu pé, mas as lindas viagens e momentos que me proporcionou e o tanto que me ensinou sobre a militância, isso não tem que tira de mim: ela foi a melhor professora do mundo quando o assunto era a militância.
Muitos outros conhecimentos também devo a ela. Perdi uma mãe, irmã e confidente. Quem vai me chamar em cima da hora pra gente sair para jantar fora ou para dar aquela paquerada básica que a gente adorava? Agora, minha amiga, minha mãe, minha professora me deixou, deixando também um legado que vou continuar, pois ela sabia que era pra isso que eu estava lá. Não vou parar. Obrigada, Valeria Rodrigues pela a honra de ter feito parte da sua vida. Obrigada pelos ensinamentos, pois esses ninguém vai me tirar. De onde estiver, seja a luz que a gente precisa, pois aqui na Terra, serei luz para nossa população, assim como você sabiamente me ensinou!"
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Elenice, uma das irmãs, era considerada por Valeria como sua "deusa brasileira". Ela se inspirou na deusa grega Nice ao criar o Instituto e batizá-lo com o apelido da irmã. Nice representa, na mitologia, a personificação da vitória, força e velocidade.
Ela amava viajar e comer bem. Aliás, comia de tudo, mas tinha uma predileção pelo frango ao molho que sua mãe, dona Elena, fazia e pelo tempero da irmã. Não se cansava de elogiar dizendo que Nice preparava o melhor arroz do mundo e que deveria comercializar as panquecas leves e saborosas que faz. "Além do meu pudim, ela gostava de comidas fortes, de rabada e de camarão na moranga", conta a irmã.
Valeria era daquelas que chegava chegando, sua presença preenchia o ambiente com luz e alegria e era sempre acompanhado de seu bordão característico: "E aêe?!", uma marca inesquecível para todos que a conheceram.
"Ela sempre me apresentava para os amigos dizendo que eu era irmã dela, mas que ela era a mulher e eu a travesti", relembra Nice, de maneira divertida, a "irmã palhaça" que vivia fazendo graça.
A família é grande. Além de Nice, Valeria teve mais uma irmã e outros cinco irmãos. "Talvez devido à sua sexualidade ou ao fato de toda a família ser evangélica, houve um distanciamento, não sei bem se foi da família com ela ou o inverso", relata Nice que, assim como sua mãe, sempre esteve ao lado da irmã trans e, junto com a mãe, foram as primeiras pessoas para quem Valeria contou que era gay.
"Foram diversos momentos difíceis, várias cirurgias... Minha irmã chegou a ficar com a vida por um fio", relembra Nice ao contar que chegou a cuidar da irmã por mais de três meses em uma dessas situações e que viu Valeria se recuperar e retornar cheia de garra. "Quando se restabeleceu, passaram-se alguns dias e ela me ligou para dizer que iria me presentear. Ela estava abrindo uma ONG e daria o nome de Nice ao instituto".
Ela sonhava em fazer faculdade e ser assistente social, havia acabado de passar no vestibular. Queria ter uma vida melhor, levar a irmã e a mãe para viajar com ela. Reformar a casa também estava em seus planos. Eram sonhos simples, que estavam aos poucos se concretizando.
Para Nice e dona Elena, as lembranças ainda trazem sofrimento, mas elas sabem que amaram incondicionalmente e que foram muito amadas por Valeria ─ que verbalizou esse sentimento por ambas por toda a vida e o reforçou pouco antes da partida. Agora, as duas resgatam, nas boas recordações dos muitos e muitos momentos engraçados que ela sempre proporcionou aos que estavam ao seu redor, a alegria de viver como Valeria viveu.
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O amigo Davi, que foi um facilitador para que a homenagem fosse publicada, contou que o que ela mais gostava de fazer era "comer bem" e que sempre era convidado pela amiga para acompanhá-la em duas de suas atividades preferidas: restaurantes e viagens.
"A Val tinha um senso de humor que eu jamais havia visto igual. Um humor inteligente, criativo, com jogadas instantâneas. Estava sempre fazendo piadas de si mesma, geralmente em relação ao sobrepeso e ao pivô ─ uma prótese que usava em um dos dentes superiores."
Com autoestima elevadíssima, estar acima do peso nunca foi um problema para ela, muito pelo contrário, estava sempre linda e muito elegante, era alvo de diversos galanteios.
No trabalho, era supercomprometida e determinada. Não havia dia nem horário para redigir seus projetos e, também, ir em busca de doações.
Para Davi, o maior sonho da inesquecível Valeria era estar à frente da Secretaria Nacional LGBT.
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Num momento crítico, no início de março/2021, em que havia lista de espera por vagas para tratamento intensivo em praticamente todo o país, a ativista foi uma das muitas vítimas que não conseguiu transferência. Nas páginas das redes sociais do Instituto Nice e da ANTRA foram publicadas notas de pesar. Valeria Rodrigues partiu deixando muitas sementes que vão germinar maravilhosos frutos para a população de mulheres trans e cidadãs travestis.
Em um de seus perfis numa rede social, a cantora Daniela Mercury postou: "Estou muito triste. Valéria era uma luz, cheia de energia, lutava e movimentava tudo e todos em prol dos mais vulneráveis".
Valeria nasceu em Campo Mourão (PR) e faleceu em Franco da Rocha (SP), aos 41 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela irmã e pelos amigos de Valeria, Elenice Rodrigues, Davi Rodrigues e Larissa Raniel. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Lígia Franzin e moderado por Lígia Franzin em 28 de maio de 2021.