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Vicente de Paula dos Santos

1954 - 2021

Um mestre do dominó que aproveitava os dias de festa para jogar com a família e com o melhor amigo.

Ele sempre foi muito além do que todos esperavam dele como pai, esposo, avô e todos os demais papeis que desempenhou na vida. Um homem despido de preconceitos que se vestia de amor e o exalava em todas as suas ações. Era simples, íntegro, verdadeiro, honesto, um coração muito grande e uma pessoa muito amável.

Dono de apelidos como Buchudo, Amor ou Mozão, ele era mais conhecido por Mancha devido a uma mechinha branca de cabelo que, curiosamente, tornou-se preta quando o restante dos cabelos embranqueceu.

Era cercado de amor porque ajudava muito as pessoas. Sua casa era sempre cheia de agregados que ele e a esposa criaram sem que isso representasse algum tipo de prejuízo para os familiares. A comida era feita em tachos bem grandes, a mesa posta para muitas pessoas e ele, muito solidário, sempre abraçou todo mundo.

Por onde passava com seu jeito engraçado, sorridente e ao mesmo tempo reservado, tornava-se querido e respeitado por seu companheirismo, parceria e amizade. Piadista, vivia dizendo bordões do tipo: "Cachorro que é mordido por cobra tem medo de linguiça" e, quando perguntado de onde havia saído isso, ele respondia: "Ah! Lá da Paraíba", e a família ria muito escutando tudo isso.

Muitas foram as histórias vividas ou que ele contava. Ele não filtrava o que dizia, e demorava para soltar uma de suas pérolas, mas, quando o fazia, matava todo mundo de rir. Certa vez ele estava no açougue de um supermercado e um cliente pediu bife de músculo, uma carne muito dura e imprópria para bifes. Sua filha, que estava perto, ficou incrédula e comentou discretamente o fato com ele. Do nada, ele gritou alto e bom som: "quem é o unha de fome que tem coragem de vir a um açougue e pedir bife de músculo?" Na hora, a família teve até vontade de se esconder por entre as gôndolas de tanta vergonha! Depois, só sobraram as risadas...

As lembranças de infância povoam a memória da neta Iasmyim, que diz: “Sempre me lembro dele sem camisa, de samba canção, deitado com as pernas cruzadas, uma das mãos segurando o controle da TV e a outra atrás da cabeça. A rotina com ele era dormir — uma coisa que todos na casa amavam fazer — ouvir música e assistir a filmes de faroeste ou desenho animado, como Chaves, Tom e Jerry e Scooby-Doo, pelo simples prazer de estar junto aos netos; que sabiam, que quando ele saía do quarto passando a mão na barriga era sinal de que estava com fome.

Com seu jeito admirável e bondoso, criou filhos, netos, sobrinhos e agregados. Era o Mozão da Iasmym, para quem foi mais do que avô, foi um verdadeiro pai. Ele tinha uma plateia cativa para a qual era o melhor humorista: “Era assim: sentávamos, eu e o meu primo, nos pés da cama dele ou no chão, para ficarmos ouvindo as piadas que meu avô contava e sempre ríamos horrores delas, mesmo já as tendo ouvido milhares de vezes, porque eram sempre as mesmas”.

Amante de música, ele possuía mais de 20 pen drives e estava sempre pedindo que gravassem mais um. Chegou até a comprar duas imensas caixas de som para utilizar principalmente quando a família estava reunida para almoçar. Ensinou os netos a gostar de Raul Seixas, Agepê, The Fevers, Os Pholhas e de músicas românticas internacionais.

Vicente amava um dominó, jogo no qual tornou-se um rei. Jogava todos os dias no trabalho, e lá, em seu armário, guardava um cofrinho cheio das moedas que ganhava apostando de brincadeirinha com os amigos; e quando este foi levado para casa, sua esposa ficou curiosa para saber onde ele havia conseguido tanto dinheiro!

Sua paixão pelo dominó era tão grande que ele mesmo construiu o seu próprio jogo com uma mesa e um caderno para anotar os gastos e ganhos das apostas. Em todas a reuniões de família ele fazia questão de jogar com os irmãos, sobrinhos, netos e com Mário, seu melhor amigo. Para ele, jogar dominó, “era quase um evento, fosse no Réveillon ou nas festas de aniversário, tinha que ter dominó, caso contrário não era festa".

Ele também gostava muito de ir a Caldas Novas com sua esposa, porque era perto de sua cidade e podiam ir de carro. Do nada os dois sumiam e só ligavam para avisar quando já tinham chegado lá. Hospedavam-se sempre no mesmo lugar e ele, que era terrível, colocava um apelido em cada pessoa que trabalhava no hotel.

Os dois viviam uma relação muito bonita. Muito romântico, embora não fosse de declarar seu amor por meio de palavras, ele o fazia com gestos concretos e presenteando a esposa com viagens, orquídeas, cestas de café da manhã, joias e outros mimos. Não deixava passar em branco nenhuma data especial, fazendo destas delicadezas a sua maneira de deixar claro o quanto a amava. E sempre foi assim, desde o começo do namoro até seus últimos dias de vida. Os dois só tinham uma divergência, que ele procurava aparar: ele não apreciava o cantor Demis Roussos; mas, como ela gostava, ele tinha sempre o cuidado de colocar suas músicas para ela ouvir, só para agradá-la.

Viviam um pelo outro e se cuidavam mutuamente. Sua preocupação era tanta que ele pensava em todos os detalhes. Procurava quitar todas as dívidas para que, quando ele partisse, ela não passasse por dificuldades e ficasse com a vida assegurada, estruturada.

Faziam tudo juntos, um sempre completando o outro. Há até uma história que se tornou motivo de muito riso na família. Certa vez, ela foi para a casa de uma irmã e ele não. Logo nesse dia ele caiu da cama e, no dia seguinte, tratou de ir atrás dela. A partir daí, teve que conviver com a zombaria de todos, que passaram a dizer que ele caía da cama quando ela não estava por perto!

Apesar de ter pouco estudo e de mal saber escrever o próprio nome, ensinou coisas que não se aprende em nenhuma escola porque tudo dele vinha de dentro. Ele ensinou a amar, a cuidar, a ajudar o próximo e a ser solidário. Ensinou o significado de família e incutiu valores como honra, honestidade, fé e amor aos animais. Ele foi referência, um pilar de sustentação, uma verdadeira encarnação do amor.

Iasmyn encontra nas músicas de Raul Seixas a inspiração para comparar o que aprendeu com o avô Vicente, um "Maluco Beleza" que lhe ensinou a ser uma "metamorfose ambulante", que não tem "velhas opiniões formadas sobre tudo" e que, de tanto vê-lo perder e aprender, perdeu o seu "medo da chuva" e aprendeu "o segredo da vida, vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”.

E ele seguiu em seu disco voador, para virar estrela, deixando para trás muita saudade.

Vicente nasceu em São José da Lagoa Tapada (PB) e faleceu em Brasília (DF), aos 66 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela neta de Vicente, Iasmyn Martins. Este tributo foi apurado por Giovana da Silva Menas Mühl, editado por Vera Dias, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 15 de agosto de 2021.