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Wagner Didolich Mafra

1956 - 2020

Na Páscoa, ele se fantasiava de coelhinho e distribuía chocolates para os colegas de trabalho.

Estar no meio da natureza e conviver com o cheiro das plantas, o canto dos pássaros, o zumbido do vento nas copas e com o silêncio infinito do mar... Ou simplesmente deitar-se na grama e com um sorriso largo e branco contemplar o céu azul. Momentos como esses eram preciosos na vida de Wagner, que em sua intensidade e alegria conseguia desfrutar de cada detalhe.

Livia, filha única que Wagner teve no primeiro casamento, recorda memórias felizes da infância e das viagens para Angra dos Reis e um hotel-fazenda em Teresópolis. Ele fazia questão de proporcionar a ela o contato próximo com os animais e apresentar esses momentos mágicos. Certa vez, no hotel-fazenda, pulou a cerca da pocilga para pegar no colo um porquinho que acabara de nascer. Como se carregasse um troféu e com um cuidado gigante, trouxe o filhote para perto dela, que pode acariciá-lo. Noutro momento, o pai acordou a filha para que, correndo, fossem ver o nascimento de um pintinho que quebrava a casca de seu ovo.

Um destaque especial para os ensinamentos de mergulho que Wagner repassou à Livia. De "snorkel", os dois apreciavam maravilhados o ambiente e as criaturas marinhas. Eram momentos de pura diversão em que os dois riam muito, quando Livia se assustava com algum peixe. Wagner se fartava de rir e dizia que só ela mesma para conseguir rir e falar com o "snorkel".

Wagner foi um pai intenso, presente e carinhoso; foi ele quem deu o primeiro banho na filha. Orgulhosa, Livia ressalta que a presença masculina nos cuidados com os filhos não era uma prática muito comum na época de seu nascimento.

O relacionamento com Cristina, a primeira esposa, durou cerca de dez anos. Algum tempo depois, foi a vez de Ana Cristina saborear a convivência com Wagner durante vinte e nove anos. O casal fez diversas viagens para vários países da Europa, momentos que Wagner vivenciou e curtiu intensamente. Foi nesse período que o casal ganhou o único neto, batizado de Tom, que desde antes do nascimento tornou-se uma paixão para Wagner.

Tom nasceu com uma síndrome rara e alguma deficiência intelectual. Para que Livia e o marido José pudessem trabalhar, quem cuidava da criança era o avô. Tempos em que Wagner pôde reviver a criança que sempre morou nele. Além da convivência cotidiana, ele inventava passeios a parques, sítios e praias. O colo do avô era o lugar preferido do neto que em sorrisos demonstrava sua gratidão e cumplicidade.

A hora do banho era uma festa e não foram poucas as vezes em que os dois literalmente tomaram banhos juntos. Numa ocasião, Wagner preparou uma banheira cheia de espuma e, como se fossem peixes, os dois brincaram alegremente entre as bolhas de sabão.

O sonho de Wagner era ver Tom andando, o que infelizmente não pôde acontecer. Os primeiros passos do neto foram dados somente algum tempo depois de seu falecimento. No universo fantástico da infância de Tom, o avô ficou curado e foi morar no Céu. Não precisará mais enfrentar congestionamentos para estar com ele o tempo todo.

Filho de Francisco e Esther, Wagner teve quatro irmãos. Com Vera Lúcia, Vânia, Verônica e Valmir buscou sempre uma relação fraternal e carinhosa. Na avaliação de todos os irmãos, ele era “o melhor irmão”, uma vez que fazia de tudo para manter a proximidade com todos e alegrar os encontros familiares. Livia ressalta que o pai era o elo da família. Uma espécie de pai de todos, o que incluía os irmãos, os sobrinhos e até a própria mãe. É que Wagner estava sempre atento às demandas dona Esther, cuidada por ele com todo carinho em sua velhice.

Na cozinha, Wagner tinha uma mão perfeita. Qualquer prato preparado por ele era garantia de sabor apurado. Seu feijão tropeiro era maravilhoso. Em dias de encontro, os familiares levavam seus potes, que voltavam para casa cheios de tropeiro. Sabendo disso, Wagner preparava logo uma panela bem grande com quantidade para que todos se fartassem e ainda sobrasse para a preparação das quentinhas.

O churrasco preparado por ele era inigualável. Em qualquer festa que fosse e tivesse churrasco, mesmo como convidado, ele chegava e ia logo para a churrasqueira. Por lá dividia seu modo de preparar e cortar as carnes e aproveitava para brincadeiras e conversas acaloradas.

Contudo, não foi somente no universo familiar que Wagner deixou suas marcas. Ele tratava com respeito e carinho qualquer pessoa que fizesse parte de sua trajetória. Via nas pessoas verdadeiros irmãos, que, a partir do que traziam para sua existência, deveriam ser acolhidos. Era assim, por exemplo, com os funcionários do condomínio e da padaria. Livia sintetiza dizendo que o pai “guardava a dor no bolso para ajudar muita gente”.

No trabalho não foi diferente. Brincalhão e parceiro de todos, o funcionário público de uma empresa que lida com processamento de dados dava leveza ao ambiente. Na época da Páscoa, ele se fantasiava de coelhinho e saía de sala em sala distribuindo chocolates. Certa vez, montou todo um cenário para fingir que estava morto e ficou lá deitado, segurando o riso ao perceber a reação de quem passava.

Como todo flamenguista, Wagner era um apaixonado pelo Clube. A cada vitória, não importando em que competição fosse, ele celebrava. No armário, guardava uma coleção de camisas que eram escolhidas a dedo conforme a ocasião.

Voltemos, agora, ao tempo em que Wagner se embrenhava nas matas com Livia... Uma das diversões dos dois era procurar as dormideiras em meio às outras espécies de plantas. Quem na infância nunca tocou nas folhas de uma para vê-las se fechar? Pois bem, Livia conta que entre as memórias mais intensas estão as desses momentos. Cada dormideira encontrada era uma felicidade. E tocar nas folhas acabava virando um ritual, que terminava muitas e muitas vezes em risadas relaxadas.

Saindo do local da cremação do pai, ela se deparou exatamente com uma dormideira no estacionamento do cemitério. Tocada e com as memórias remexidas, procurou logo um jardineiro e contou a ele sobre a importância daquela plantinha na relação com o pai e pediu que a ajudasse a tirar uma muda. E assim foi.

Em casa, num dos momentos de saudade, rezou e pediu a Deus um sinal de que o pai estava bem lá onde se encontra. Pediu flores de dormideira, que somente brotam de madrugada e vivem apenas 24 horas. É que Wagner foi-se bem a contragosto, pois amava a vida e a filha preocupava-se com isso. Um tempo depois, veio o recado de Wagner de que tudo estava bem. Duas flores de dormideira enfeitavam a planta e a janela do apartamento de Lívia. Aliviada ela agradeceu a Deus e ao pai pelas flores.

Wagner segue vivo, nos primeiros passos de Tom; nas trilhas das matas; no silêncio infinito e colorido do oceano e nas florações das dormideiras.

Wagner nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 65 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela filha de Wagner, Lívia Mafra. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Ernesto Marques, revisado por Magaly Alves da Silva Martins e Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 20 de dezembro de 2021.