1931 - 2020
Com seu jeitinho meigo, inspirou os seus a aceitar os acontecimentos da vida.
(Esta é um crônica escrita por Cristina Vergnana para sua mãe, Wilma)
Por outros olhos...
Ela fechou os olhos para abri-los lá no Céu.
Viveu 88 anos... quase, quase 89. Se vocês conversassem com ela a respeito, a ouviriam dizer que viveu. Não fez grandes planos... Não criou altas expectativas... Foi seguindo sua vida, conforme esta se lhe apresentava.
Teve muitos momentos difíceis, mas achava que a vida tinha sido, no final das contas, boa, com a graça de Deus, em Quem acreditava e à vontade de Quem se entregava docilmente.
Poucas coisas eu me lembro de ter ouvido de sua boca como uma queixa rude, reprovação ou imposição. Acho até que tinha uma certa dose de obstinada teimosia (talvez um traço do seu signo de touro), mas não costumava se impor. Não tinha gestos de agressividade, não gostava de comandar, tinha um jeito meigo de ser e de levar os outros a seguirem suas orientações (quando cabia).
Uma coisa, contudo, (recordo bem!) ela fazia questão de reforçar e reiterar: seu nome, Wilma, era pronunciado como no inglês, com som de “u” para o “w”. “Não com o som de 'v' como no alemão!” – insistia em destacar. Uma vez, comentou comigo que, nas palavras cruzadas, havia uma opção: “mulher vil e má”, que gerava o nome “Vilma” como resposta para colocar nos quadrinhos (com v ou com w, tanto faz) e que isso a tinha marcado de forma incômoda. Dá até para entender, né?! Em todo o caso, para quem assistiu aos Flintstones em som original, em inglês, basta recordar como o Fred chamava aos gritos a sua mulher quando algo estava errado: “Wilmaaaa!!!!” (ou seja, “/uilmaaaa/”). Assim, nem soa tão estranha a exigência dela!
O ponto a considerar é que todos e todas nós temos uma autoimagem. Esta, no entanto, é a perspectiva subjetiva e pessoal que possuímos/construímos de nós mesmos. Não significa que corresponda à plena e completa verdade dos fatos (verdade entendida como acontecimento empírico e comprovado), muito menos se afine com a representação que os demais têm de nossa pessoa. Ela, por exemplo, tinha um apelido de infância: “Beleza”. Tinha sido dado por sua madrinha de crisma. Não entendia o porquê. Nunca se achou bonita. E, definitivamente, não gostava do seu nariz, que considerava grande. Um dia, então, resolveu perguntar à madrinha a razão do apelido. A resposta foi a mais óbvia e cristalina: “Ué?!? Porque você é bonita, claro!”
E assim são as coisas... O que observamos diante do espelho é um reflexo da forma como nos vemos. Às vezes está supervalorizado, às vezes, subestimado... Sempre será um constructo muito particular, que poderá oscilar com nossos humores. E, como todos temos essas perspectivas subjetivas diante da vida e das coisas, serão distintas das infinitas percepções que as pessoas, com quem convivemos ao longo de nossa existência, projetam de nós.
Quando uma pessoa morre, os parentes mais próximos recebem um sem-número de mensagens de pêsames. É muito comum que boa parte delas expresse o que se sentia sobre o falecido, como essa pessoa era vista. Quase sempre são opiniões positivas, pois alguém precisa ser muito cruel ou sem noção para denegrir a imagem do morto ante seus familiares e amigos pesarosos e em luto.
Apesar das inúmeras possibilidades de interpretação e opinião, Wilma gerou imagens mais ou menos homogêneas e próximas. “Uma mulher meiga, amável e temente a Deus!” “Um jeitinho meigo, que tanto nos inspira a aceitar os acontecimentos da vida.” “Uma guerreira e exemplo de vida” “Sempre foi muito querida! Nunca ouvi uma pessoa sequer fazer citações sobre ela que não fossem elogiosas!!! E com justiça, porque ela sempre foi uma pessoa muito especial.
Entregou seus exemplos de vida, mas sempre sendo extremamente carinhosa com todos!!!” “A tia que jogava jogo dos pontinhos e adedanha, estudava, via Castelo Rá-tim-bum e Vale a pena ver de novo, fazia comidas gostosas (batata e ovo fritos) para os sobrinhos em segundo grau que ficavam com ela depois da escola quando eram pequenininhos.”
“Uma pessoa que conduzia sempre com bondade assuntos delicados.” “Tinha um sorriso meigo e franco, com olhinhos apertados e voz mansa.” “Quando criança, sempre foi boa aluna e o braço direito das professoras.” “Sempre foi dócil e meiga.” “Foi uma boa filha, uma boa irmã, boa amiga, boa esposa, boa mãe, boa tia. Uma pessoa especial.”
Resumindo, seja parente, amigo ou simples conhecido, meiguice, delicadeza, amabilidade, fé, força, coragem e resignação ao enfrentar a vida foram as imagens que se formaram em suas mentes e corações sobre essa senhora de atitude jovial e fresca.
Ela morreu em meio a uma pandemia. Não pôde ter velório presencial. Mas foi cercada por uma coesa corrente de orações e pelos sentimentos irmanados que quase se tornaram físicos, em sua divulgação pelos meios virtuais, tão fortes e sinceros foram.
Talvez seja raro encontrar tamanha unanimidade quando diferentes pessoas lançam seu olhar sobre alguém. Mas isso conforta e inspira. Dá mais segurança e confiança para enfrentar um desconhecido que se nos apresenta de forma ameaçadora. Apenas seguir vivendo, sorrindo para flores e crianças, cantarolando e desfrutando um dia de cada vez, como ela nos ensinou a fazer!
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Wilma era uma carioca do subúrbio do Rio, natural do bairro de Inhaúma. Na época, como dizia, o bairro parecia uma zona rural. Foi muito pobre. Morava em um lugar semelhante a um cortiço, com tanque e banheiro coletivos. Falava com muito carinho dessa época, das brincadeiras com as crianças vizinhas, do curral muito limpinho pertencente à proprietária do terreno, das rádio-novelas, da Rádio Nacional, dos amigos que tinha e que frequentavam a sua casa, das músicas, danças, teatrinhos e festas que faziam... E as festas juninas? Delícia! Quantas crendices!
Não gostava nem um pouco de ser chamada de "Vilma". Seu nome era Wilma, como no original "The Flintstones", com som de /u/. Conforme se descrevia, era bastante tímida, uma aluna dedicada e que queria ter estudado para ser professora, mas teve que trabalhar para ajudar à família. Boa parte do seu salário era reservado a isso. Era muito habilidosa. Fazia lindos trabalhos manuais que aprendera na escola profissionalizante como crochê, bordados, tricô, chapéus. "Costurou muito para mim e minha irmã", diz a filha Solange.
Perdeu o pai com apenas 5 anos. O irmão, que tinha 15 anos na época, substituiu a figura do pai. Sempre demonstrava o amor por eles e a dor pelas perdas. Seu irmão era o Papai Noel da família, construía brinquedos, rádios. Aos 17 anos, foi levada por uma prima para trabalhar no pequeno Banco de Crédito Pessoal, no centro do Rio. Possivelmente por sua profissão, seguiu um caminho diferente das irmãs. Não continuou seus estudos, mas teve seus horizontes ampliados com o trabalho.
Foi no banco que conheceu o seu marido e único amor. A filha mais velha demorou a nascer para os padrões da época. Então, o casal pode curtir a vida do modo deles. Liam muito juntos, passeavam, adoravam cinema, viajavam de carro. Esteve sempre ao lado das duas filhas. Estimulou-as a estudar, ter uma carreira e a "não depender de um homem". Foi uma grande conselheira. Segundo a filha Solange, a mãe foi uma mulher comum, sem muitas aventuras. Era discreta e reservada, mas carinhosa e atenciosa. Guardava seus problemas para si e tentava apaziguar os ânimos.
Wilma era extremamente católica desde cedo e sempre doou a sua vida pelos outros. Apesar de resoluta, ela era gentil e sorridente. Vivia contando histórias e cantarolando. Também gostava de escrever. Falava sempre da sua vida e de coisas da sua juventude de um modo muito romântico e curioso. "Contava orgulhosa que participou de festas do Getúlio Vargas no Campo do Vasco e que foi regida por Villa-Lobos", diz Solange.
Era registrada no dia 20 de maio por questões legais mas sua data de nascimento era no dia 7 de maio. Estaria comemorando o aniversário de 89 anos, mas a sua missão chegou ao fim em 1º de maio, dia do seu aniversário de casamento. Segundo sua irmã caçula, muito companheira sua quando eram solteiras, Wilma foi ao encontro do seu grande amor, já falecido. Seu médico dizia que chegaria aos 120 anos, mas, apesar de muitos cuidados e todo o isolamento possível, a Covid-19 não permitiu.
Diz a filha Solange para a sua mãe, Wilma:
"Nestes períodos sombrios, mãe, ficamos com você tanto o quanto pudemos. Evitamos ao máximo expô-la ao vírus. Não quisemos deixá-la abandonada, sozinha, isolada em frio de um CTI. Optamos pelo atendimento humano, domiciliar, com suas filhas e tudo o que pudemos oferecer - nebulização, cilindro de oxigênio, medicamentos, exames, médica, fisioterapeuta e cuidadoras. Todos tivemos o seu amor e a amamos durante todo o tempo. Mas sua saúde piorou. Tudo foi tão rápido! Nosso consolo é que o seu curto período hospitalar foi sem sofrimento, sem consciência, sem dor.
Eu, sua caçula, vivi a vida inteira com você. Você cuidou de mim e foi meu esteio em incontáveis momentos. Conversávamos, mas também discordávamos de modo veemente... Tínhamos uma relação muito intensa. Bom, conviver comigo não era fácil, não é? Mas éramos muito amigas e partilhamos uma vida! Pude, ao menos em parte, retribuir os cuidados e carinhos que recebi. Agora, tenho que me refazer e aprender a não tê-la, fisicamente, mais ao meu lado.
Hoje, o que tenho para você, mamãe, são minhas orações, minha conduta, meu amor e as lembranças carinhosas. Estou certa, também, de que, junto ao Pai, nossa Mãe Maria e todos aqueles que nos amaram, você continua olhando e cuidando de todos nós aqui em baixo."
Wilma nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e faleceu no Rio de Janeiro (RJ), aos 88 anos, vítima do novo coronavírus.
Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelas filhas de Wilma, Cristina Vergnano e Solange de Souza Vergnano. Este texto foi apurado e escrito por Cristina Vergnano, revisado por Joselma Coelho e Didi Ribeiro e moderado por Rayane Urani em 27 de junho de 2020.