Sobre o Inumeráveis

Carlos Alberto Serrate

1954 - 2021

Era símbolo de resistência: ao racismo, ao abuso de direitos e, especialmente, às adversidades da vida.

A vida do estudante de primeiro ano de Agronomia virou de ponta cabeça quando os pais se separaram. Beto, como o chamavam em casa, completava seus 19 anos e, por circunstâncias familiares, teve que assumir a criação e o sustento das quatro irmãs mais novas, ainda adolescentes. Cuidava de Conceição, Marislei, Márcia e Elaine no papel de pai, mãe e irmão. “Canalizamos nosso amor nele. Ele foi tudo para nós porque nossos pais nos abandonaram”, conta a caçula Elaine.

Não hesitou diante da missão. Largou os estudos e pôs o pé na estrada como caminhoneiro, profissão que exerceu por décadas até que o diabetes desse os sinais e prejudicasse sua visão. Tinha aprendido a dirigir, ainda perto dos 10 anos, com o próprio pai, que também ganhou a vida na boleia. Viajava o Brasil inteiro e se mostrava companheiro também dos colegas de estrada, por onde fez amizades e espalhou sua característica bondade.

Ganhou o apelido de Zumbi. Resistia e se posicionava contra as situações de racismo e a favor da igualdade da própria raça. Participou de um projeto de criação de uma cooperativa de caminhoneiros e conquistou inclusive cargo administrativo, tamanho era seu engajamento nas causas coletivas.

Vanda entrou no seu caminho e mudou seus passos desde a primeira dança, num baile da cidade onde moravam. O casamento aconteceu quando Carlos chegou aos 26. As irmãs continuaram “pedindo socorro” e bem próximas a ele e até “atrapalharam um pouco”, reconhece Elaine, em tom amistoso. Os nascimentos de Dara, Luana, Caetano e Victor, no entanto, alimentaram a união do casal. O tempo passou e com ele foi a vez de os três netos trazerem alegria à família.

Leitor voraz de livros, revistas e jornais desde jovem, Carlos dava o mesmo incentivo à sua prole. “Quando saía em viagem, deixava um livro para cada um e trazia um presente na volta para quem terminasse a leitura. E acrescenta: “era inteligente, antenado, muito culto, gostava de política e História”. As filhas seguiram seus conselhos e conquistaram o diploma universitário. Os rapazes, inspirados nas coleções de miniaturas de carros do pai e na sua profissão em si, decidiram trabalhar com mecânica.

Sorridente e alegre, Carlos também era bom de prosa e promovia muitas reuniões com o próprio clã. Fã de Ney Matogrosso e de Legião Urbana, foi homenageado no seu enterro ao som da música “Pais e filhos”.

Da infância em família, Elaine lembra dos cafés da tarde com omelete que Beto preparava para as irmãs e das orientações “sobre sexo, menstruação, mudanças no corpo” que dava a elas. “Ele falava de tudo com a gente.” Para completar, também foi Beto quem a levou ao altar. E se declara: “ele era meu porto seguro!”.

Carlos nasceu em Osasco ( SP ) e faleceu em Osasco SP , aos 66 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela irmã de Carlos, Elaine Cristina de Paula Serrate Siqueira. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Fabiana Colturato Aidar, revisado por Bettina Florenzano e moderado por Ana Macarini em 26 de outubro de 2022.