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Daniela Grigio Rizzo

1975 - 2021

Apaixonada pelos Cuidados Paliativos, cuidadosa com todos, renunciava a si mesma e assim se sentia feliz.

Daniela era uma amiga recente que chegou como quem não quer nada. Cheia de vida, sorriso largo, interessada pelo outro. Falar sobre esta amizade construída no curto período de um ano traz em si o risco de ser superficial. Mas Dani, como nós a chamávamos, era profunda até nas pequenas coisas, mesmo nas amizades recentes entregava seu coração. Era uma mulher intensa, viva.

Nos conhecemos no início da pandemia, fomos colegas de pós-graduação em 2020, no curso Avançado Multidisciplinar de Cuidados Paliativos da Casa do Cuidar. Formamos com mais duas amigas, Fabiana e Laís, um grupo de trabalho que se encontrava semanalmente pelo Zoom para desenvolver o tema “Cuidando de Quem Cuida”, objetivo de nossa entrega final.

De pronto entendemos que o essencial seria viver na prática o cuidar. Estávamos vivendo um momento inesperado com a chegada do coronavírus. O cuidado consigo e com o outro tinha passado a ser uma questão de sobrevivência dentro do panorama pandêmico. Um momento em que os inesperados desafios de quem cuida por vezes pareciam intransponíveis, investidos que estavam de uma intensidade desproporcional ao que poderia ser considerado minimamente aceitável.

Como cuidar do outro se não soubéssemos cuidar de nós mesmas? E nos vimos diante do desafio de integrar a teoria com a práxis no dia a dia e nos nossos encontros virtuais. Não poderíamos imaginar que esses encontros via Zoom, inusitados no início, seriam uma grande oportunidade de nos tocarmos à distância. A princípio, duvidamos, em função da restrição das leituras corporais, sensoriais e energéticas numa tela. No entanto, para nossa surpresa, a tecnologia trouxe uma nova possibilidade, se não o ideal, ao menos mais eficiente do que supúnhamos.

Com uma boa dose de atenção, escuta e sensibilidade, passamos a exercitar a comunicação observando cada rosto enquadrado e ouvindo atentamente cada palavra dita. Cada uma em sua casa, nos visitamos, entramos até nos quartos, com tele transporte gratuito. Falávamos sobre como estávamos lidando com o novo, sobre os nossos medos, os sufocos, os cuidados, as famílias, vinham risadas e lágrimas. Estar ao lado de Daniela nesse tempo foi um presente.

Às vezes ela se sentia sobrecarregada, pois tinha o incontrolável impulso de dar conta de tudo e de cuidar de todos à sua volta. Ela sabia disso e buscava os recursos para cuidar também se si mesma. Uma das formas era por meio da meditação, dizia que a ajudava muito. Falava muito em atenção plena. Adorava cozinhar. Começou a fazer seus próprios pães, que exibia com orgulho. Preparar um alimento artesanalmente, feito com as próprias mãos, era mais uma expressão do modo cuidadoso de ser de Daniela; se era uma tarefa trabalhosa, isso não importava, pois havia grande prazer no compartilhamento. O processo de fazer pão a alimentava para além do ato de comer. Era sua forma de cuidar de si também. Quando tirava o pão do forno, uma vez me disse, orgulhosa: “Olha que lindo! É fermentação de 24 horas. E a assadeira é ótima, foi um presente do meu pedreiro.”

Aos finais de semana, recebia familiares na casa espaçosa em São Bernardo, onde morava com o marido Nilton, o filho Diego e a sogra, a ativa dona Idalina, de 82 anos. Encontrar os entes queridos não era apenas uma formalidade, era essencial para ela. Ficava radiante com a presença de seus pais Euclides e Alba e também quando a irmã, Fernanda, vinha de Pardinho com os filhos. Gostava de ir visitá-los também. Porém as visitas rarearam durante a pandemia.

Dizia que os momentos mais emocionantes de sua vida foram o casamento com Nilton, dezoito anos mais velho, e a viagem para visitar o filho em Paris, quando Diego estava com 27 anos e cursava o último módulo da faculdade de engenharia na capital francesa.

Dani era alegre, queria o bem de todos. Tinha um criterioso senso de justiça. Tinha coragem de ser quem era. Sentia gratidão. Construía laços contando sobre sua vida, colocando-se ao lado, valorizando os vínculos e a rede de amizade. Não recusava ajuda a ninguém, renunciar a si mesma a fazia feliz.

Costumava dizer: “Cuidar do outro é o que mais me realiza, o que mais me nutre”. Admitia que tinha mais facilidade de cuidar do que aceitar ser cuidada, tentava não se sentir egoísta ao cuidar um pouco de si mesma: “É muito difícil essa situação de ser cuidada. Pra mim está sendo muito difícil, mas tô aprendendo”.

Henrique, médico, um dos irmãos de Dani, com quem ela trabalhava, conta: “Ela tinha um coração puro, sem maldades. Queria o bem sempre e defendia com garra o que acreditava. Queria a união da família e fazia questão de valorizar os amigos e tê-los sempre por perto. Sempre esteve comigo nos momentos mais importantes da minha vida. Incentivou minhas ideias, me acolheu nos maiores desafios. Sonhava estar junto no Cuidado Paliativo, transformando sofrimento em amor”.

Daniela foi luz por onde passou. Era de sua natureza humana colocar cuidado em tudo o que fazia. Seu marido, Nilton Rizzo, e seu pai, Euclides Grigio, também morreram em decorrência da Covid-19 na mesma semana em que ela.

Daniela nasceu Santo André, SP e faleceu São Paulo,SP, aos 47 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido irmão de Daniela, Henrique Grigio Rizzo. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Bettina Turner, revisado por Ana Macarini e moderado por Ana Macarini em 3 de abril de 2022.