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Delcides Maria de Oliveira

1939 - 2020

A menina, que enganava a fome com uma colherada de café, tornou-se uma guerreira e sempre tinha amor para dar.

Quando menina, Delcides viajou com a família do Piauí até o Maranhão, a pé e em lombo de burro, para fugir da seca. A miséria onde viviam era tão grande, que a mãe fazia um copo de café e colocava apenas uma colherada na boca de cada filho. Para comer, só havia uma fruta do campo, chamada Tucum, que eles misturavam à farinha de mandioca.

No Maranhão, Delcides casou-se e teve sete filhos. O marido faleceu, e ela de novo se mudou, de Sabonete para Pedreiras, uma cidade maior. Fez a viagem a pé, durante o inverno, sob chuva e atravessando rio, com os filhos pequenos na cangalha de um jumento.

Em Pedreiras, construiu uma casinha com teto de palha e começou a trabalhar como lavadeira. Pegava as trouxas nas casas dos fregueses, lavava de dia e passava de noite, sob a luz de um poste (não havia iluminação em casa).

Pouco a pouco, a casinha foi melhorando. Ganhou dois quartos, depois cinco. Delcides criou assim os seis filhos, sete netos e três bisnetos.

A menina que enganava a fome com uma colherada de café, agora podia servir três refeições por dia para a família. “Vocês estão no céu”, ela dizia para os familiares, porque havia comida na mesa. Na casa de Delcides nunca faltou um ovo ou tomate para comer com arroz, um biscoito, um café.

Ela gostava de ver todos reunidos, principalmente no Natal.

Delcides nasceu em Campo Maior (PI) e faleceu em Pedreiras (MA), aos 80 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pela neta de Delcides, Suelem Brunieri de Freitas. Este texto foi apurado e escrito por jornalista Martha Batalha, revisado por Lígia Franzin e moderado por Rayane Urani em 26 de junho de 2020.