Sobre o Inumeráveis

Leila Gonçales da Silva

1954 - 2020

Amava bater perna nas cidades que visitava para conhecer as lojinhas, principalmente em Ubatuba.

Mulher de expressão delicada e graciosa, Leila tinha um sorriso lindo que encantava todo mundo. Tinha muita sensibilidade na fala e dedicava atenção plena quando ouvia as pessoas. A sua receptividade era isenta de julgamentos. Era comum familiares a procurarem para conversar e desabafar, porque ela direcionava palavras de incentivo a todos. Ela foi e permanece sendo o grande amor de Sérgio, seu marido, e é a inspiração sublime de sua filha Gisele.

Nasceu no interior de São Paulo, em Botucatu, e depois morou em São Caetano por boa parte da vida. Ela era a mais velha de quatro irmãos e costumava dizer que o pai dela era o amor de sua vida. Curtia demais passar férias na fazenda dos avós em Piramboia, distrito da cidade paulista de Anhembi.

Sua família foi sempre muito próxima e unida, até a sua vida adulta. Era muito amiga de sua avó. Tanto é que os irmãos dela costumavam brincar dizendo que ela era a favorita da avó — protegida por ser a única mulher — e recebia sempre a melhor parte do frango servido às refeições.

A mãe de Leila era diretora no colégio em que ela estudava; nesse espaço, ela aprendia, brincava e "causava". Ela sempre falou da infância com muito carinho e saudade. Essa fase feliz, refletiu-se em sua formação e personalidade, reproduzindo-se também na qualidade da relação com a única filha que teve — foi a melhor amiga de sua filha.

Dedicou-se por anos ao magistério até aposentar-se como professora de História. Era amada por seus alunos e, mesmo depois de anos aposentada, permaneceu como exemplo e inspiração para alguns de seus antigos alunos, que acabaram por se tornar professores. Ela foi decisiva na influência e escolha da carreira do próprio marido que trabalhou dando aulas até aposentar-se. E, segundo Sérgio, “foi a melhor coisa que ela fez na vida”.

Não quis ser professora desde sempre. Contudo, logo se apaixonou pela profissão, prosseguindo estudos — fez faculdade de Estudos Sociais, Pedagogia e História. “Minha mãe era uma professora extraordinária. Ela também foi minha professora e a quantidade de ex-alunos que me escreveram consternados foi bastante expressiva na ocasião em que ela faleceu. Disseram coisas lindas em suas mensagens: 'ela foi minha melhor professora'; 'ela me estimulou a ser professor'; estes últimos decidiram seguir os passos dela", relata a filha Gisele. “Tem muita gente que estudou comigo, e é professor, que diz que se inspira nela até hoje — há quem diga que não houve melhor professora de História na História!”

Ela era uma professora muito criativa. Suas aulas de História nunca foram chatas: iam muito além da memorização de datas, fatos ou personagens. Os conteúdos que ela trazia com paixão eram apresentados por meio de uma didática sensível, que, por fim, humanizavam as pessoas que passavam por suas mãos.

Para facilitar o acesso ao conhecimento e melhorar a aprendizagem de seus alunos, Leila criava múltiplas estratégias no ambiente da sala de aula: encenava peças de teatro; pedia a eles que escrevessem letras de música; orientava na construção de cenários; trazia músicas para que eles entendessem o porquê das coisas. Eram admiráveis a sua dedicação e o seu empenho. Ela nunca se limitou a ensinar apenas o que estava nos livros e era isso que cativava os alunos. Não há dúvida de que ela era uma profissional realizada, apaixonada e feliz.

Teve um casamento sólido e extremamente feliz por quarenta e quatro anos. Era difícil separar Leila de Sérgio: o entrelaçamento harmonioso, a cumplicidade e a parceria entre eles eram bem fortes. “Estavam sempre juntos e constantemente brincando e tirando sarro um do outro”, comenta Gisele, acrescentando que seus pais foram o casal mais apaixonado que ela já viu. O amor deles dois a inspira e motiva a alcançar essa meta. “Eles sempre viveram numa ‘bolha’, era o mundinho deles. Assim agiam e assim falavam: "Se ele/ela não for, eu não vou”.

Ser mãe sempre foi o maior sonho de Leila. Ela tentou, por anos, sem desistir, até que conseguiu ter a Gisele, que criou e educou com o maior amor do mundo. Foi uma mãe muito orgulhosa, que participava de tudo na vida da filha.

Ela não acreditou quando o médico informou que ela estava grávida. Gisele nasceu após um trabalho de parto muito longo. Dona Maria, mãe de Leila, estava quase "quebrando o hospital". Andava de um lado para o outro querendo informações sobre a filha e a neta. Dona Maria queria saber o porquê de não poder entrar na sala. "Quando eu nasci, minha mãe não perguntou para o médico se era menino ou menina, ela só perguntou se era perfeito. Ela falou 'eu queria tanto que fosse um bebê saudável, então não me importava se era menino ou menina'".

Sérgio e Leila apenas namoravam e, certa vez, "quebraram o pau" em uma discussão para escolha de prováveis nomes para os filhos que viessem a ter no futuro. Ela só viria a engravidar tempos mais tarde.

Rusgas foram raríssimas entre o casal, dá para se contar em apenas uma das mãos e ainda sobram dedos. “Nunca íamos dormir magoados um com o outro, ficávamos até de madrugada conversando pra resolver qualquer eventual desentendimento; não deixávamos nada pra depois. Nós éramos muito amigos, companheiros realmente. Andávamos sempre juntos, dificilmente a gente fazia alguma coisa sozinho”, conta Sérgio.

Leila amava as plantas e os animais. A sua casa era repleta de plantas, flores e bichos. Ela conversava com suas plantas todos os dias enquanto as regava. Amou incondicionalmente cada bichinho que teve, cuidava deles com todo o amor e carinho, e chorou dolorosamente a perda de cada um dos seus animais de estimação. Leila amava a vida!

Ela sempre falava para a filha que ela precisava conversar com as plantas. Em uma das visitas de Leila à Austrália para ver a filha, ela presenteou Gisele com uma orquídea. Gisele conta que a planta foi o último presente que recebeu da mãe, e passou a conversar com as flores para que elas permanecessem vivas.

Gisele conta como era a linguagem utilizada por sua mãe para dirigir-se às suas plantinhas. "Ela falava: 'Oi, minha linda, bom dia! Como é que você está? Vou te colocar uma aguinha!' E eu faço igual, aprendi esse discurso amoroso para dialogar com as plantas. Essa forma delicada de perguntar como elas estão ou de elogiar".

Assim que adquiria uma nova planta, ela ia ligeiro arrumar um cantinho para pôr. Em seu apartamento, ela fez suportes para orquídeas, para que ficassem protegidas da chuva, mas ainda assim recebendo a incidência filtrada da luz solar. Em momentos especiais, como o aniversário e o Dia das Mães, ela sempre recebia flores ou plantas de sua filha. Gisele costumava brincar dizendo que “era preciso um caminhão pipa para aguar todas as plantas do apartamento”.

Quando Gisele tinha quatro meses, Leila voltou a trabalhar como professora eventual. Um dia, na escola, a mãe de um aluno estava doando filhotes de cachorro, porque a mãe dos cachorrinhos os estava rejeitando. Então, Leila adotou um. Gisele conta essa história aos risos, por lembrar-se dos relatos de sua mãe sobre a adoção do cachorrinho — a filha não dormia e nem o cachorro. Ela dava mamadeira para Gisele e chuquinha para o filhote de apenas um mês.

"A gente teve cachorro a vida inteira”, continua Gisele. “Os últimos foram todos resgatados e adotados. A última chama-se Valentina, porque ela foi achada em um rio; alguém a jogou propositalmente no rio, mas sobreviveu e permanece lá com meu pai, sendo a razão da vida dele: a cachorrinha é o motivo dele acordar e levantar todo dia".

Outros animaizinhos tiveram presença na vida de Leila. Ela ganhou uma calopsita que a mãe encontrara. Trata-se do Monstrinho, batizado assim porque o bichinho era muito bravo. Quando Leila era criança, ela tinha um porco de estimação na fazenda dos avós, o Chico. Quando o porco ficou idoso, o avô de Leila matou o Chico para fazer de janta e ela se recusou a comer, dizendo que "não ia comer o próprio filho".

“Após sua partida, a casa ficou vazia. Hoje, quem sente a sua falta somos todos nós: suas plantas, sua cachorrinha, o papai e eu. Perdemos nossa melhor amiga, aquela que foi a luz das nossas vidas e nos preenchia de amor. Ela permanece amando a vida, mas agora ela ama a vida do outro lado, cercada de seus bichinhos que já haviam partido, cercada dos seus pais e irmãos, aqueles já falecidos. Ela jamais deixará de ser amada e lembrada do lado de cá”, desabafa Gisele com saudade.

Segundo sua filha, Leila não falava muito "eu te amo", mas era afetuosa no abraçar, no beijar e no modo de estar presente para tudo. Até mesmo na idade adulta de sua filha, Leila buscava respostas e a solução de problemas para melhor cooperar com a filha.

Quando a filha se casou e precisou ingressar em seu apartamento com uma geladeira nova, não obteve sucesso. Foi Leila quem transmitiu tranquilidade, dizendo: “Fica tranquila, os 'homi' resolve, os 'homi' resolve tudo". Pode ir trabalhar tranquila”, relata Gisele rindo. Leila tinha as chaves da casa da filha e quando Gisele chegou à noite do trabalho, a geladeira estava instalada, bonita, funcionando e ela tinha colocado alimentos e algumas guloseimas dentro. “Pensei que seria um fracasso como dona de casa, mas o apoio de minha mãe foi o modo mais óbvio de eu me sentir uma filha muito amada e muito desejada”.

Quando da primeira visita à casa de Gisele, na Austrália, ela quase enlouqueceu a filha, pois o dinamismo do casal visitante alterou a rotina da casa dos anfitriões. “Eles se divertiram 'até'! Andaram pra cima e pra baixo, inclusive de trem. A filha morava em Melbourne, à época, e foram todos viajar para Sidney. Ela adorava andar e a filha também, por isso, ambas saíam para ‘bater perna’.

Seu genro também foi motivo de orgulho para ela, que o considerava como filho, amando-o como tal. Ele sempre se deu muito bem com Leila e com Sérgio, apesar de não falarem a mesma língua, pois o marido de Gisele é sul-africano. Leila o levava para passear, iam a museus e mesmo sem um entender o que o outro falava acabavam por se comunicar de alguma forma.

Leila teve alguma apreensão de deixar a filha única mudar-se para a Austrália, mas como essa mudança era algo bom para a filha e para o casamento dela, a mãe apoiou. Por ocasião das despedidas para o retorno ao Brasil, ao fim daquela primeira visita, Leila disse, aliviada: "Agora eu vi onde você mora, a vida que vocês têm e vi o quanto vocês são felizes aqui. Então, como mãe, tenho a sensação do dever cumprido: minha filha está encaminhada, está bem".

Ela amava caminhar, conhecer as cidades, "dar uma olhada nas lojinhas", como ela falava. Mãe e filha cumpriam rituais quando estavam juntas: "Saíamos para “bater perna em todas as cidades, principalmente em Ubatuba”, diz a filha.

Uma das principais características de Leila era saber colocar-se em disponibilidade para as pessoas sem fazer julgamentos. Ela sempre confiava e ajudava sem reservas. Ela era assim: se houvesse alguém que estivesse precisando de alguma coisa, mesmo que tivesse acabado de conhecer a pessoa, ela seria capaz de doar a roupa do próprio corpo para ajudar. Leila foi umbandista por muitos anos, mas tornara-se espírita e foi praticante também por muitos anos. Nos últimos tempos, passou a praticar apenas em casa, com suas leituras e preces.

Sérgio conta que era um prazer imenso estar com a esposa: “Ao lado dela, tudo era muito bom. A gente se completava em tudo, tudo, tudo. Tudo mesmo. Então, hoje quando eu a procuro e não acho mais, dá uma dor muito grande no fundo do coração. Converso sozinho comigo mesmo, como se estivesse falando com ela, e isso me alivia. E quando eu me sinto triste, olho para a foto do casamento da minha filha e isso me traz um alívio muito grande, porque eu vejo o sorriso dela. Ela estava sempre rindo, ela tinha um sorriso muito bonito e que contagiava todo mundo. A parte de cima do meu apartamento parece uma floresta. Eu deixei aqui todas as plantas dela".

Sérgio cedeu aos encantos de Leila instantaneamente, assim que a viu: “Eu trabalhava, mas estava de férias em casa e nós morávamos na mesma rua. Ela vinha vindo da escola — ela fazia ensino médio na época — e usava aquele uniforme com uma saia cinza, um pouco comprida, que ela enrolava na cintura, então parecia que estava de minissaia. E em pouco tempo de namoro eu senti que estava apaixonado. Foi coisa de poucos meses, acho que uns três meses, e eu já percebi que ela era a pessoa que eu queria junto de mim. Desde o começo do namoro nós sempre nos demos muito bem. Ela me completava em tudo, realmente”.

O marido conta ainda um fato muito engraçado que ocorreu no dia do casamento: “Tinha chovido. Depois que a chuva parou, corria água pela rua, que era uma descida. Estava todo mundo preocupado com a cerimônia do casamento, menos ela. Leila estava parada na calçada, junto a guia, com uma priminha, criança ainda, jogando barquinho de papel para correr na água e assim distrair a menina".

O casal reunia-se com frequência com um dos irmãos de Leila e a esposa dele para entretenimento e lazer. “A gente viajava muito. Antes de termos a nossa filha, a gente fazia faculdade. Quando chegava sexta-feira à noite, mesmo cansados, a gente ia para a rodoviária, escolhia uma cidade qualquer e ia para lá, passar o final de semana e descansar, só nós dois. E nunca tivemos um contratempo, nem qualquer frustração. A gente se divertia muito”, relata Sérgio, com certa nostalgia.

“Ela sempre gostou de animais. Nós sempre tivemos cachorro. Hoje eu tenho a cachorrinha que ela adotou. Minha esposa se foi, mas deixou a minha filhota de quatro patas. Eu falava que ela era um pedacinho da Leila, porque aonde a Leila ia, ela ia atrás. Hoje ela é o meu pedacinho, não desgruda".

Sobre a aventura da faculdade, Sérgio conta: “Para minha irmã, Leila não era uma cunhada, era uma irmã. Elas faziam faculdade juntas, cursavam Estudos Sociais. Quando a Gisele nasceu, ela parou de fazer a faculdade, e eu já havia concluído a minha. Aí, no começo de um certo ano, eu a levei para fazer a matrícula e ela disse que eu tinha que voltar lá no dia seguinte. Pensei que teria que levar algum documento pendente, mas então ela me disse: ‘Eu fiz a sua inscrição no vestibular, para você fazer a faculdade comigo’. E aí eu fiz as provas, passei e fui fazer Estudos Sociais com ela. Na semana seguinte, ela havia arrumado aula para mim, para eu mesmo pagar a faculdade dando aulas. Eu continuei e me aposentei como professor. Ela me fez ser professor e foi uma das melhores coisas que ela fez na vida”.

“A minha esposa tinha muita fé na Educação, dava a vida pelo ensino. Todos gostavam muito dela, colegas e alunos. Ela foi uma pessoa que ajudava todos, sempre. Ela deve estar em um lugar muito bom, porque ela só merece coisas boas”.

A honestidade era a característica que Sérgio mais admirava em sua esposa: “Ela era uma pessoa muito honesta, em todos os sentidos, com todos. Ela sabia fazer amigos, que permanecem até hoje. Ela sabia reconhecer seus erros, não tinha vergonha de pedir perdão. Eu a admirava em tudo. Ela tinha muita garra. Ela nunca me deixou desistir dos meus sonhos e dos nossos sonhos".

Eles pretendiam realizar plenamente o sonho de morar em Ubatuba e conseguiram comprar uma casa lá. Mas não se mudaram, por conta da dificuldade de acesso a médicos — Leila tinha marca-passo. Por isso, continuaram morando em São Bernardo e, de tempos em tempos, iam para Ubatuba passar um mês.

Gisele e o pai, Sérgio, levaram as cinzas de Leila para Ubatuba, para uma de suas praias preferidas. Gisele refez o caminho que fazia todos os dias com a mãe quando iam caminhar e paravam para tomar água de coco ou sorvete.

Leila nasceu em Botucatu ( SP) e faleceu em São Paulo SP, aos 65 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha e pelo marido de Leila, Gisele G. S. Hershon. Este tributo foi apurado por Ana Laura Menegat de Azevedo, editado por Ricardo Henrique Ferreira, revisado por Maria Eugênia Laurito Summa e moderado por Rayane Urani em 19 de novembro de 2021.