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Alberto Monteiro de Andrade

1939 - 2020

Comprava latinhas mesmo sem precisar, somente para ajudar as crianças mais carentes do bairro.

Ele amava contar as histórias e casos de quando na infância ia lancear – que significa pescar com a rede; falava de fantasmas; do dia que em que foi picado por uma cobra e da vez que ele viu uma caveira. “E eu”, diz a filha Adriane, “... gostava de passar horas sentada ouvindo, quando eu era criança, justamente porque meu pai nunca tinha medo de nada e nestas situações ele o teve.”

Dono de uma generosidade que não deixava dúvidas, apesar de seu pouco estudo e muitas limitações; carregava muito conhecimento e uma visão da vida tal que nem os filhos imaginavam que ele pudesse enxergar tão longe.

Às vezes ele fazia certas coisas que a família não entendia o porquê e que, só depois de sua morte, descobriram seus verdadeiros motivos. Por exemplo, ele comprava toda semana latinhas de umas crianças e os filhos o questionavam dizendo que ele não tinha o que fazer com elas e que, se fosse vendê-las, pagariam muito pouco. Além disso, alegavam que ele não precisava mais disso e que poderia se machucar ou até ficar doente juntando as tais latinhas.

Acontece que, alguns dias após seu falecimento, algumas crianças começaram ir até sua casa para dizer que com sua morte, tinha morrido também sua fonte de renda. E foi aí que, depois de tantas brigas, que ainda assim não abalavam seu bom coração, descobriram que ele agia assim com o objetivo de ajudar as crianças (que não precisavam mais se esfalfar à busca de compradores) e, com o pouco dinheiro recebido com venda das latinhas, também ajudar um casal de vizinhos cujo marido se encontrava inválido após um AVC.

Muito batalhador, começou a trabalhar bem cedo para conquistar o próprio dinheiro. Nascido no interior do Pará numa cidadezinha na Ilha de Marajó, viveu por muito tempo afastado das cidades e por isso precisou correr atrás do que aquela região não tinha para oferecer para ele.

Enfrentou uma verdadeira saga de heróis. Foi picado várias vezes por cobras, arraias e enfrentou todos os tipos de animais exóticos. Trabalhou com embarcações e transporte de madeira e chegou até a levar a vida bem até um momento em que enfrentou uma crise financeira e decidiu se mudar para a capital Macapá.

Lá conseguiu reconstruir a vida trabalhando com madeira, desta vez não com o frete e sim com a venda, e conseguiu uma certa prosperidade, mas, mais uma vez a vida lhe conferiu um duro golpe com a mudança das leis municipais. Ele teve que vender os domínios que possuía e, como uma fênix, que sempre ressurge das cinzas não importando o quão baixo caia, novamente conseguiu se reerguer.

Ele se casou aos 18 anos e cultivou uma relação pautada pelo cuidado, carinho e fidelidade que durou 60 anos. Ele e esposa pareciam ser muito felizes e muito unidos fazendo tudo juntos. Ele apaixonado por ela, sempre acordava mais cedo e preparava o café para levar-lhe na cama todo dia. Era incapaz de chupar uma bala sem dividir com ela. Se ela não estivesse por perto, ele a guardava para dividir com ela mais tarde. Só tomava suas refeições se ela estivesse à mesa com ele.

Na relação com os dez filhos era muito atencioso, preocupado com o seu bem-estar e demonstrava o amor que sentia por meio do cuidado que oferecia a todos eles. Seu zelo chegava ao extremo de comer com ostensivo gosto as partes do frango que ninguém queria — inclusive ele, como pés, cabeça e moela, só para deixar a melhor parte para os filhos. E ele disfarçava tão bem que isso só foi revelado quando um dos filhos brincou que iria comprar estas peças do frango separadas porque ele as adorava...

Adriane, a mais nova, foi sempre a neném do papai, e retribuía sendo carinhosa dizendo que amava ele, que ele era lindo fisicamente e como pessoa. Quando ouvia isso, ele ria muito e perguntava se ela estava com problemas nas vistas e perguntava se já tinha ido ao médico para verificar isso.

Ela conta fatos que relembram a amorosidade do pai: “Quando eu era menor, morei em uma casa de dois andares que meu pai construiu e tinha muito medo de descer as escadas e, então, quando eu queria descer, sentava bem na pontinha. Quando meu pai via lá debaixo os meus pezinhos, logo ele aparecia para me ajudar”.

A ligação entre os dois era tanta que, às vezes, em alguma de suas muitas viagens de barco para Macapá, ela conseguia até predizer o dia que ele chegaria e acertava deixando todos intrigados. Quando ela fez sete anos, sua mãe preparou uma festa com muito carinho e ela, na hora de dar o primeiro pedaço do bolo, foi correndo dá-lo ao pai deixando a mãe chateada, porque esperava que fosse para ela, mas seu pai ficou tão feliz e radiante que, na sua opinião, valeu a pena.

Ela brinca dizendo que não foi a alma gêmea dele porque esse lugar era o de sua mãe, mas ele era seu porto seguro, seu conselheiro e até o seu massagista quando sentia dor nas costas e sofreu muito quando teve que conviver com sua falta um certo período de sua vida: “Quando fui morar fora do Brasil, não tinha uma vez em que eu falasse dele sem me encher de emoção. O coração transbordava de amor e eu chorava de tanto que amava ele”.

Alberto era um colecionador de qualidades não só aos olhos da família, mas também de todos que o conheciam. Era considerado como herói, como um ser humano maravilhoso digno de admiração, respeito e amor. Bondoso, direto, confiável e verdadeiro, não importava o que ele falava e todos, sem dúvida, consideravam como verdade.

Ele era do tipo quieto e caladão, mas que, se alguém puxasse a conversa, ele tinha assunto. Se estava entre os amigos e ele tivesse intimidade, conversava muito sem nunca falar de dor ou sofrimento. Se estivesse enfrentando algum, os filhos só podiam adivinhar.

Dava exemplos práticos de vida quando questionado ao dar dinheiro a pedintes no trânsito. Ensinava que devia se perguntar qual era necessidade da pessoa e que, se fosse fome, a comida deveria ser providenciada. Se isso fosse impossível ele dava umas moedinhas se mantendo firme em seus princípios e dizendo que sua parte estava feita.

Era atencioso, bondoso e acreditava muito no ser humano e, depois de sua morte, a família foi muitas vezes abordada por pessoas que nem sequer imaginavam que ele conhecia para dizer o quanto eles estavam tristes, pois além de amigos, era ele quem lhes ajudava financeiramente.

Manter-se presente, preocupado, cuidando dos filhos e da casa parecia ser seu hobby preferido. Sua esposa era o amor de sua vida e os filhos as suas paixões. Mostrava que a família deveria ficar unida, sem brigas e que todos deviam se apoiar mutuamente.

Adorava festas, elogios e as declarações de amor nas redes sociais que eram todas lidas pela mulher e o deixavam orgulhoso e vaidoso como um pavão fazendo com que os filhos não economizassem esse tipo de afeto explícito.

Adorava fazer palavras cruzadas e jogar baralho todos os dias. As tardes com ele eram sempre relaxantes, seguras e sem preocupação. Adriane se recorda saudosamente que: “Estar apenas em silêncio já era muito bom, pois a única preocupação que passava na minha mente era sobre o bem estar dele. E quando ficávamos só nós dois, eu me lembro de passar horas ouvindo as histórias dele. E era muito bom porque eram momentos muito valiosos.”

Alberto faleceu com 80 anos e brincava sempre que era difícil ter essa idade. Viveu de forma resiliente e, ao seu lado, os momentos eram tão marcantes e especiais que se tornaram histórias maravilhosas quando recordadas. Gostava de dançar desde a juventude, ouvir serestas e músicas de Roberto Carlos. E também de usar um certo desodorante e uma certa pomada para dores que tornaram seu cheiro inconfundível e inesquecível.

Ele dizia que não precisavam comemorar seu aniversário e nem lhe dar presentes, mas quando lhe desobedeciam e faziam isso, ele ficava muito feliz e curtia muito, como aconteceu na festa de 80 anos com a participação de toda a família e que ele até parecia saber que seria a última.

O legado que Alberto deixou foi o de um super herói igual ao dos cinemas, com um coração que o fazia parecer gigante, que inspirou os filhos a praticarem a boa índole, a confiabilidade, os bons princípios morais e a resiliência que não deixa nunca desistir em meio às adversidades da vida.

Alberto nasceu em Breves (PA) e faleceu em Brasília (DF), aos 80 anos, vítima do novo coronavírus.

Testemunho enviado pela filha de Alberto, Adriane do Socorro Machado de Andrade. Este tributo foi apurado por Giovana da Silva Menas Mühl, editado por Vera Dias, revisado por Walker de Barros Dantas Paniágua e moderado por Rayane Urani em 1 de setembro de 2021.