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Alfredo José Rosendo

1921 - 2020

Poeta sertanejo e exímio contador de histórias, sua arte exaltava a riqueza e a tenacidade do homem do campo.

“Sou Alfredo José Rosendo
Filho de Modesto e de dona Brisdinha
Se eu não faço um poema melhor
É porque não frequentei a escolinha.”

Seu Alfredo era um poeta sertanejo que sonhava com a escola.

Pedro Moraes, que fez uma reportagem sobre o amigo em 2010, diz: "É difícil manter a serenidade em um momento tão difícil. Gostaria muito de ter a honra de me despedir do grande amigo Alfredo Rosendo, um homem simples, de bom coração, com uma biblioteca mental vasta da história lapoense", e conclui lindamente, antes de nos presentear com a matéria de capa que teve retratada a história de Seu Alfredo: "Quando um poeta morre, um rouxinol se cala, quando um contador de histórias parte para a eternidade, uma centelha de luz da nossa sociedade se apaga".

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As gotas geladas de uma suave garoa tocam suavemente na terra seca e árida, em um fim de tarde em que o chão quente do semiárido agradece aos céus pela benção de encontrar com sua fonte de energia, exalando, assim, o cheiro de terra molhada, sinônimo de prosperidade na vida do sertanejo. O são-joão, árvore típica da biodiversidade local, abre suas flores, amarelas feito ouro, provando para quem duvidar que a beleza surge no improvável. Em torno deste cenário, que flerta entre o belo e a simplicidade, encontro seu Alfredo Rosendo, um lapoense de expressão forte, alto, de voz firme e corpo esguio, com 89 anos de histórias, causos e lições de vida. Em uma casa antiga, feita com as próprias mãos, Seu Fredo, como é carinhosamente conhecido, mora em companhia de ilustres convidados: a música e a poesia.

O cheiro do café passado na hora abre as portas para uma longa conversa sobre a vida, sonhos e a arte, despertada em 1985, quando seu município de origem, Lapão (BA), tentava se emancipar. Em versos simples, de um homem que nunca foi à escola, Fredo foi de encontro aos velhos coronéis da terra e declamou com garra e coragem a seguinte estrofe:

“Deixa de tanta promessa
deixa de tanto esperar
agora chegou a vez
de Lapão emancipar.

Lapão já foi muito atrasado
só quem viu sabe contar
só tinha duas escolas
mesmo assim particular.

Hoje, o Lapão já conta
no setor da educação
com um dos melhores colégios
da microrregião.

Lapão tem um povo hospitaleiro
isso eu não nego
só faz muito fuxico na época da eleição
deixa de tanta promessa
deixa de tanto esperar
agora chegou a vez
de Lapão emancipar.”

De acordo com Alfredo, na época, algumas famílias tradicionais reuniram 500 assinaturas em um manifesto contra a emancipação. “Eles alegavam que a cidade era a ponta da rua do município de Irecê, mas eles tinham interesses pessoais por trás disto, achei que não tava certo, porque Lapão já estava desenvolvida, foi então que tive a vontade de fazer meu primeiro verso e dei uma chicotada neles.”

“Não tinha como estudar, e chorava.”

Frequentar uma sala de aula foi o maior sonho do poeta sertanejo, porém os tempos difíceis da época de criança não deixaram sua aspiração virar realidade. Apesar de não poder ir à escola, sua vontade era maior que a maioria dos obstáculos. Com uma “banda” de toucinho de um porco gordo, doado pelo seu avô, foi para cidades vizinhas vender a mercadoria. Ao todo conseguiu 200 réis, dinheiro suficiente para comprar um livro ensinando a arte do ABC. “Quando meu avô trouxe o livro, só fui dormir quando aprendi a primeira carreira de letra, gravei até o ‘é’, depois fui tocando meus estudos pra frente. Em quinze dias já sabia ler. Meu avô morreu na grande crise de 32, e fomos trabalhar numa roça que só tinha onça e caititu. Lá, passei de inteligente e fiquei conhecido por fazer um cavaquinho com uma faca com apenas 12 anos, ficou tão bom que muitas pessoas quiseram comprar, acabei vendendo pra comprar uma roupa bem bonita que fazia tempo que não tinha.”

Apesar do esforço, o garoto promissor ainda não sabia escrever até que a noiva do tio questionou: “Você já sabe fazer seu nome?” Triste e envergonhado, ele respondeu: “Não”. Foi então que a jovem segurou em sua mão e com um toco de madeira riscou o nome do menino para ele copiar. “Fiquei muito feliz, gravei aquilo e nunca vou me esquecer. Saí correndo pra mostrar a todos, mas muita gente não acreditou. Meus parentes só acreditaram de verdade quando a moça chegou e confirmou tudo. Sonhava tanto em aprender que, quando ia comprar alguma coisa, montado no lombo de um jumento, passava por perto da escola, amarrava o animal e ficava ouvindo eles aprenderem e passava a tarde toda. Quando chegava em casa, minha mãe questionava: ‘Você foi no Lapão ou no Japão?’”, lembra o poeta.

Infelizmente, a vontade de aprender chocava com a dura realidade e o sonho de frequentar as salas de aula para se tornar “um homem letrado” se tornava cada vez mais distante. “Foi muita vontade, mas fiquei só na vontade. Minha mãe era viúva e tinha seis filhos, ela me dizia: ‘Vamos plantar um algodão, se a lagarta não comer compro sua farda, e você vai pra escola’, mas foram anos duros, a região passava por uma seca danada, sobrevivíamos com cuscuz de mucunã, que é um caroço vermelho e venenoso, mas colocávamos de molho, quebrava a casca e tirava uma folhazinha que tem dentro e moía. Então, realmente, não tinha como estudar e chorava que as lágrimas desciam. Fiz até um verso que é mais ou menos assim:

‘Na idade de dez para onze anos
sorri pouco porque a coisa era muito feia
só comia um alimento que não era do mato
se fosse em casa alheia.’”

“Hoje sei escrever um pouquinho e fazer umas continhas. Não leio cantando como um formado, mas, graças a Deus, não sou cego”, ele diz. Mas nem só de poesia se inspira Alfredo, o poeta sertanejo, que também “toca uns tonzinhos” para se divertir. “Comecei a tocar com 12 anos, na época que fiz o cavaquinho. Via meu tio fazendo uns tons e fui aprendendo. Logo as pessoas me chamavam pra bater uma sanfona e tocar violão, mas hoje é só pra se divertir em casa. Toco umas músicas de igreja, uns sambinhas e uns sucessos de Amado Batista, Waldick Soriano, Vicente Celestino e Alvarenga e Ranchinho.”

Alfredo casou a primeira vez aos 16 anos, teve dois filhos e ficou viúvo. Ainda jovem começou a labuta. Após a vida do campo, trabalhou durante quarenta anos como barbeiro e marceneiro e conta orgulhoso que todo serviço era feito com prazer. “Gostava quando cortava o cabelo e o cliente exigia o corte e qualidade no serviço. Se fosse fazer um móvel, fazia com todo capricho, escolhia sempre uma madeira boa e buscava a perfeição. Fiz móveis que até hoje nunca descolaram uma placa. Ganhei fama por aqui, o povo comentava: ‘Esse é bom no machado’.”

Apesar de nunca ter lido um livro de poesia, os versos de Alfredo brotam com naturalidade. Com uma linguagem regional, rica em detalhes e lembranças de um povo sofrido e lutador, o poeta sonha em publicar seus versos, já impressos artesanalmente, feito cordel, e distribuídos na cidade. Porém, esse almanaque vivo, simples, inocente e sábio, precisa de apoio para imortalizar suas lembranças; seja para falar de um sorriso de uma criança, uma gameleira ou de uma gruta, Alfredo deseja publicar um livro e contribuir para deixar escrita na história a riqueza e a poesia do homem do campo.

Alfredo nasceu em Lapão (BA) e faleceu em Lapão (BA), aos 99 anos, vítima do novo coronavírus.

Tributo escrito a partir de testemunho concedido pelo amigo de Alfredo, Pedro Moraes. Este texto foi apurado e escrito por Lígia Franzin, revisado por Paola Mariz e moderado por Rayane Urani em 17 de janeiro de 2021.